Deus em Seu caminho

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São pouco mais de 20 horas. Saio do trabalho por uma rua quase escura por onde passam poucas pessoas à noite. Já de longe, ouço um homem vociferar coisas que não entendo exatamente. As palavras parecem turvas, distorcidas pelo volume excessivo da caixa de som ruim e mal regulada.

Quando me aproximo, percebo um cubículo de luzes acesas – os outros poucos estão todos fechados – com cadeiras dispostas em frente a um pequeno púlpito. Pelos meus cálculos mentais, devem ser umas trinta cadeiras. Praticamente, todas vazias.

Em frente a elas, um homem de meia idade segura um microfone e diz, emocionado, coisas que ainda não consigo entender claramente devido à distorção do som e sua dicção ruim. No entanto, ele grita. Eleva o tom e estica a última sílaba de algumas palavras.

A fala está recheada de clichês neopentecostais. Apenas uma mulher ocupa uma das trinta cadeiras disponíveis. É ela quem me impede de dizer que todas as cadeiras estavam desocupadas.

O cubículo não tem fachada e apenas o nome da igreja pintado à mão, diretamente na parede, indica que lugar é aquele. Nenhuma sofisticação, nem o mínimo sinal de qualquer ostentação ou da prosperidade propalada por tantos pastores.

Apenas as cadeiras plásticas vazias, a caixa de som ruim, um pastor exaltado e uma ouvinte, que talvez seja a esposa do homem que conduz esse rebanho imaginário, talvez uma mulher em busca de alguma resposta improvável que lhe permite sobreviver à lida terrível do cotidiano.

Eu, que estou muito longe de ser uma boa ovelha, me comovo com o tom apaixonado do discurso. Nem sei o que ele diz, mas invejo que alguém possa dizer tão firmemente algo para uma plateia vazia. Penso, com algum sarcasmo, que não posso mais reclamar da falta de atenção de alguns alunos meus.

Tento elaborar mentalmente, enquanto sigo para casa, os desafios do pastor e seu rebanho de ninguém. Nenhuma torneira de ouro no banheiro de sua igreja, que talvez não tenha água nem mesmo banheiro. Sem fiéis e dízimos substanciosos que permitem uma vida de luxo para seus pregadores. Nenhuma elegância no púlpito soberano em que os holofotes acendem o astro do espetáculo. Aparentemente nenhuma resposta para as promessas e recompensas divinas.

São apenas um homem, lâmpadas amarelas esmaecidas, uma caixa de som ruim com luzes irritantes de led e a fé de um sujeito que certamente acredita no que diz, ainda que possa estar errado, sob o tom firme e estridente de seus gritos e louvores que, talvez, nem Deus escute.

Ou, assim como eu, escute, mas não compreenda enquanto segue seu caminho de volta para casa.


IMAGEM: Copyright: PonyWang

Theo Alves

Theo Alves

Theo G. Alves nasceu em dezembro de 1980, em Natal, mas cresceu em Currais Novos e é radicado em Santa Cruz, cidades do interior potiguar. Escritor e fotógrafo, publicou os livros artesanais Loa de Pedra (poesia) e A Casa Miúda (contos), além de ter participado das coletâneas Tamborete (poesia) e Triacanto: Trilogia da Dor e Outras Mazelas. Em 2009 lançou seu Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis (poesia e contos); em 2015, A Máquina de Avessar os Dias (poesia), ambos pela Editora Flor do Sal. Em 2018, através da Editora Moinhos, publicou Doce Azedo Amaro (poesia).

Como fotógrafo, dedica-se em especial à fotografia documental e de rua, tendo participado de exposições que discutiam relações de trabalho e a vida em comunidades das regiões Trairi e Seridó. Também ministra aulas de fotografia digital com aparelhos celulares em projetos de extensão do IFRN, onde é servidor.

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4 Comments

  • Hélio Furtado

    Talvez o narrador tenha apenas presenciado o início de um empreendimento que, com certeza, poderá trazer muito lucro no futuro. Vai depender apenas de sua persistência e de sua capacidade de persuasão para atrair um rebanho para sua igreja.

    • Theo Alves
      theo

      é bem possível que seja isso mesmo. uma start up da fé. 🙂

    • Theo Alves
      Theo

      Muito obrigado, meu amigo!

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