Croniketa da Burakera #21, por Ruben G Nunes
“Somente o homem pode amaldiçoar” – é o que diz Dostoievski em “Memórias do Subsolo” de 1864. Romance perigoso. É preciso coragem pra se ler.
Dostô-velho-de-guerra faz striptease da alma humana. O leitor fica nu diante do espelho de si mesmo. Desvenda o subsolo psicomoral de cada um. Mostra belezas, terrores e horrores, de que todos somos feitos. Sem exceção.
Diz ele que o dom inato de amaldiçoar “é privilégio do homem”. E, segundo as “leis da natureza”, é também “a principal das qualidades que o distinguem dos outros animais”.
Ou seja: animais, mesmo irracionais, não amaldiçoam. Já o homem é passional. Mas como ser racional certamente é “belo e sublime”, afirma Dostô, em sua fina ironia. Mas sua principal qualidade é praguejar estupidamente. Que nem velho pirata cheio de rum preto.
Parece razoável essa percepção do velho-Dostô sobre o homo maledicentis, que nos habita.
A energia de viver, no homem, é desejo-emoção, antes de mais nada. “Eu te amo porra!”, música polêmica do cantor baiano Tomate, é bem a marca dostoievskiana do vidavidar humano.
Olhando a VidaViva, a gente se dá conta que, em toda discussão acerbada, com ou sem briga física, há sempre palavrões e xingamentos, recheados de maldições, pragas, ameaças.
Amaldiçoar é coisa humana deveras bizarra. Há nisso um emocional incontrolável. Que só se acalma na dura sonoridade do palavrão. O palavrão ofende-acalma. É neurótico-terapêutico.
Mas, há maldições também no silêncio do pensamento. Ficam lá borbulhando, sem sair. Grudadas na gelidão dos rancores. Como gosma grudenta. Houvesse uma história honesta do interior humano, certamente, viriam à tona todas essas “pensações amaldiçoantes” entocadas.
O esporte comprova esse insight de Dostô. Nas galeras do futebol, por ex., o palavrão carrega energia passional súbita. Tão explosiva quanto ambígua. Que serve pra vibrar de alegria quando o craque do teu time faz uma jogada genial: “Porra, esse fiadaputa é o cão!” Como pra pipocos de raiva ou arrivismo contra o adversário “Fiadaputa! Corno velho!”.
Há ainda a maldição gestual. Seja dando-o-dedo; seja o corno-gesto. Na política essa qualidade natural é assaz patética. A xingação, em política, é antecedida por respeitoso termo parlamentar: “Vossa Excelência é uma besta!”.
É mané, o velho-Dostô é o cão chupando manga!
Houve um caso pitoresco de amaldiçoamento público. Foi em Manaus. O prefeito da época era Amazonino Mendes (PTB), processado por compra de votos.
Mas, lá veio ele com pose de prefeito dedicado fazer visita de emergência à uma área de risco na periferia, afetada pelas chuvas. Região miserável. Casas construídas, sem licença, em encostas perigosas. Duas crianças e uma mulher morreram naquela semana soterradas.
O prefeito subiu no caixote imaginário de Nelson Rodrigues e deitou falação aos moradores. Explicou o grave risco das construções irregulares. Delirante, pediu que o ajudassem como prefeito.
Um negão cuspiu o chiclete.
Ocorreu então um diálogo dostoievskiano entre ele e uma moradora. “O senhor quer nossa ajuda como?”, indagou a desempregada Laudenice Paiva, 37, moradora antiga, que havia perdido tudo no temporal.
De cima do seu rodriguiano caixote imaginário o prefeito responde com paternalice politicamente correta: “Não fazendo casas onde não deve, minha filha”. (o “minha filha” é um paternalismo eleitoreiro essencial nessas horas).
Olhar duro de quem não sabe mais a quem recorrer, a moradora retruca: “Mas tamos morando aqui porque não temos condições de moradia digna em outro lugar.”.
Mas lá dentro da desempregada Laudenice, seu pensamento cuspia e escarrava: “Porque esse corno velho num resolve logo essa porra, em vez de falar, falar…?”.
Mas já em voz alta, ela desabafa-desafia: “Aaaah, mas não dá pra sair daqui não, seo prefeito. O sinhô quié otoridade é que tem que nos ajudá”.
Palmas da galera. O negão assoviou.
Segundo as leis da nobre natureza humana, o edil encrespou-se e sapateou no caixote. Chamado aos brios, em sua autoridade caixotal, Sua Excelência, politicosamente, desandou: “Não quer sair, é? Então morra, minha filha, morra, morra, morra”.
Assim é VidaViva!