Há poucos dias, um amigo me telefonou para dizer que resistiu muito antes de aceitar o uso de um aparelho nos ouvidos, a fim de ampliar sua capacidade auditiva. Octogenário, sua qualidade de vida melhorou com essa decisão, pois voltou a interagir normalmente no âmbito social e mesmo familiar. Chama-se presbiacusia a perda progressiva da audição nas pessoas idosas. Após 70 anos, o transtorno já pode afetar cerca de 50% dessa população, com aumento progressivo de acordo com a idade do grupo em questão. Uma das primeiras queixas do paciente é de que ele escuta mas não entende o que foi falado, além da necessidade constante de aumentar o volume da TV ou do rádio. Há uma dificuldade maior em entender vozes femininas ao se comparar com as masculinas. Não há como se livrar desses incômodos próprios de quem avança na idade, ao lado de outros. Mais cedo ou mais tarde, sorrateiramente, eles vão mostrando sua força. Porém, apesar dos pesares, envelhecer ainda é a melhor opção.
Relembro aqui e presto singela homenagem ao amigo e colega médico Gley Nogueira (1940-2022), otorrino competente e digno, que sempre manteve grande amor à especialidade e extremo cuidado aos seus pacientes. Foi um médico humanista, na expressão mais veemente do termo. Assisti a uma palestra que ele proferiu sobre o sofrimento do deficiente auditivo, quando extravasou de emoção, com o choro a substituir-lhe as palavras, por alguns minutos. Sua fala tratava da surdez total e não da hipoacusia do idoso, por exemplo, que, em algumas ocasiões pode até causar momentos hilários. Sobre o assunto, há alguns anos, li um romance ótimo, “Surdo Mundo”, do escritor inglês David Lodge. Abro o livro nas primeiras páginas e releio um diálogo de um casal, na faixa dos 60/70 anos, ele já portador de problemas da audição, logo após uma reunião social. Ela pergunta: “– Quem era aquela moça loira que conversava com você? – Eu não vi Moira, ela estava lá? – Moira, não, a moça loira”. Cenas hilárias iguais a essa se repetem ao longo da leitura da obra, sobre a qual, à época do lançamento, disse o Times Literary Supplement (TLS): “… nenhum relato médico descreveu tão bem a multiplicidade da confusão, frustrações e estratagemas sociais a que a surdez dá origem”.
No tocante à surdez total, tal qual a que levou o colega Gley Nogueira às lágrimas durante uma palestra, dois expoentes das artes no âmbito mundial chamam a atenção: na música, Ludwig van Beethoven (1770-1827), e, na pintura, Francisco de Goya (1746-1828). Por volta dos 47 anos, Goya contraiu doença que o privou da visão, da fala e da audição. Ao se recuperar, voltou a ver e a falar, mas permaneceu surdo até o fim da vida. Em face de que as melhores obras de Goya pertencem ao período da surdez, o autor de “Surdo Mundo”, David Lodge, pergunta: “Será que ele é grato à doença que o privou da audição?” E o próprio escritor responde: “Algo me faz crer que não. Mas deve ter passado pela cabeça dele que tinha sido uma sorte perder a audição em vez da visão”. Apesar de serem obras-primas, as pinturas de Goya produzidas depois da surdez são um tanto sombrias e soturnas. Exemplo típico é o seu autorretrato do Museu do Prado de Madri, obra de 1815, no qual o autor revela todo o seu desencanto da vida.