Coragem, mostra tua cara

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Não era a leveza do radinho FM, nem a rebeldia tipo zona sul, tampouco o colorido da tv pré-MTV ou o último refrão da banda mais recente a subir ao pódio do hit parade brazuca. A partir de mais ou menos 1983 uma energia diferente, renovada, consumista sim, mas não só isso, irresponsável, mas tomada por um sentimento de entrega que justifica todas as tomadas de posição, entrava em cena no meu, no seu rádio, aparelho de tevê, escada de prédio popular, elevador de burguês, calçada ou o que fosse. Entrava em cena o que você pode chamar de Geração 80, Brock, juvenília de butique, o que quiser, desde que reconheça uma contribuição que aquela gente, hoje um bando de cinquentões como eu e como você, estimulou ou recebeu, consagrou ou propagou, acendeu ou turbinou com certa liberdade que esse tempo sombrio de Covid, arma oficial no cinturão e ignorância bossal na cachola solapou: a coragem.

Falta coragem, e como falta, de uns tempos pra cá. O que fizemos com a nossa ousadia, nosso peito à prova de velhas ameaças, nossa até falta de senso de perigo? Penso nisso após assistir a meros 15 minutos do documentário no acervo do Netflix – será que nossa coragem foi chupada sem a gente perceber pela tela do Netflix? Mistério! – sobre o Barão Vermelho. Dé, Maurício, Frejat, Guto e Cazuza se jogando na vida. Cinco burgueses e um país precisando de uma chacoalhada. E eles foram apenas um dos agentes a fabricar as bases daquele novo país de então. Era como se houvesse uma faixa de sintonia fina pairando no ar, do Leblon a Neópolis, de Caicó a Pelotas. Um fio desencapado à espera da ignição feita por grupos com o Barão para conectar os novos habitantes pensantes de um país com tanto pra deixar para trás. Eu sei, havia uma colonização cultural sul maravilha, eram rapazes de vida fácil e dinheiro à mão, mas de algum lugar sempre tem de vir o sopro.

Décadas depois, o vento vinha de lugares menos privilegiados no arrastão do Rappa e assemelhados. Não é isso – era, de novo, a coragem. Eles levavam vantagem, meninos bem postos e mimados com espaço para gritar no microfone platinado? Sim, mas podiam ter se acomodado. Hoje, parece que é tudo acomodação – ok, não é, mas sem alguma generalidade não se faz uma leitura de nada, absolutamente nada. E o que se louva aqui é a falta que faz aquela visão, aquele grito, aquela luz que mesmo encharcada de álcool e drogas na embriaguês da liberdade há pouco admitida, despejava sobre tudo e todos o tamanho das nossas incertezas e da hipocrisia daquela gente sentada nas suas salas.

A engrenagem do tempo, aquele que nunca para, fez das suas e nos jogou hoje nesta realidade infelizmente muito mais forte da acomodação geral, no mínimo, ou da recusa da paixão e da humanidade pura e simples – e tudo isso vai além da política, meu irmão, que como eu chora as doces lágrimas de um tempo melhor, só isso, melhor.

Cadê a coragem que se instalou nas salas até então cheias de naftalina dos anos 80? Você vai me dizer que parte daqueles bravos guerreiros virou coveiro daquela mesma coragem ao se revelar ainda mais ultrajantes do que os antiprofetas do país fardado do pré-85. Verdade, mas não vendo pra eles meu desencanto – insisto na memória dos que ficaram pelo caminho esmagados pelos efeitos do vigor daquela mesma coragem. Teriam capitulado também os hoje mortos aos capitães do momento? Pra mim, jamais. Se esse pessoal aí fora já arruinou o país da esperança da minha geração não venha me pedir pra pichar a memória de quem me alimentou dessa fé profana, lírica, pop, juvenil e sem limites.

Eduardo pode ter virado um bolsonarista inspirado nos tempos em que jogava futebol de botão com seu avô, mas exclua Mônica dessa história. A adesão foi dominante, mas não completa. E esse jogo, reflito aqui enquanto entrego os pontos diante do documentário sobre o Barão, ainda não terminou. Nunca termina. Recomeça. Recua, fode-se onde parecia que iria triunfar, mas também sabe preparar seu momento. É nesta parte que entra a coragem.

A vida é bela, embora muitas vezes seja uma merda. Vem tudo junto. Só não precisavam exagerar tanto. Nem vacina tem mais. Ainda assim, Brasil, mostra tua coragem. Que a cara já conhecemos há tempos.

Tião Vicente

Tião Vicente

Jornalista e servidor público (às vezes essas duas atribuições se confundem). Nasceu por acaso em Caicó, cresceu em Parelhas, estudou em Recife e Natal, aprendeu jornalismo e juventude nesta última, cansou um pouco e mudou para Brasília, trabalhou em edição em jornal e TV até fazer um concurso público para entregar esse brilhante currículo à emissora de tevê da Câmara dos Deputados. Tem funcionado até hoje. Por fora, pratica essas infidelidades paraliterárias. Tem uma central de blogs, quase todos esquecidos (para referência, arrisque novosopaodotiao.blogspot.com).

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