Cervejarias ciganas e o “coworking” cervejeiro

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Saudações, andarilhos cervejeiros!

Vamos falar hoje de “cervejarias ciganas”. Não, não tem nada a ver com etnias ou com andanças sem rumos. Ser uma cervejaria cigana não é (necessariamente) ser andarilha. No entanto, vamos tentar mostrar um pouco da realidade de trabalho de várias pessoas no meio cervejeiro que somam esforços nessa modalidade de produção.

Ser uma cervejaria cigana é, antes de tudo, se esforçar para trazer um bom produto, mesmo sem uma estrutura de produção própria, e tal tentativa demanda muitos elementos que diferenciam o produto final. Com seus elementos prós, e também com seus elementos contrários ao modelo de produção efetuado.

O modelo de produção desempenhado pelas cervejarias ciganas é o que se costuma chamar na linguagem empresarial moderna de coworking, ou seja, reparte-se o ambiente de trabalho, ou melhor, compartilha-se o ambiente de trabalho para que se otimizem as rotinas de produção. Em um mesmo espaço ou em uma mesma estrutura física, mais de uma cervejaria produzem, fazendo com que haja a diluição de alguns dos custos inerentes ao produto cervejeiro.

Assim, vamos falar um pouco mais sobre os desbravadores “ciganos” que tentam trazer o nosso pão líquido de cada dia, repartindo estruturas e somando esforços em prol da cultura e da comunidade cervejeira.

Ser cigano é ser…?

Parodiando Euclides da Cunha, o qual dizia que: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”; podemos dizer também que “o (cervejeiro) cigano é, antes de tudo, um forte”! A eloquência de tal assertiva não se sobrepõe à dura realidade de que nem sempre é fácil militar na seara cervejeira (haja glamour cervejeiro…). Os percalços são muitos e nem sempre o lucro (e/ou o sucesso) é certo e garantido.

Aqueles que inicialmente se aventuram numa tentativa de produção cigana, usualmente, são os que estão migrando de uma produção caseira para algo mais profissional (claro que existem exceções de “maior porte”, as quais serão mais adiante destacadas). Pode-se dizer que esse é o próximo passo na evolução cervejeira, sem que seja necessário ou mandatório um investimento de vultosas quantias para que se perpetue a produção outrora iniciada. Ser cigano abre um leque de produção mais sólido, ainda que sem um “capital inicial” próprio, em termos estruturação física de implantação dos processos cervejeiros.

Para que se possa vislumbrar se alçar no mercado cervejeiro (que ainda seja considerado “pouco povoado”, o que abre maiores chances de sucesso) é necessário que se crie uma demanda pelo seu produto. Muitos cervejeiros caseiros até possuem boas receitas e alguma experiência no que fazem. No entanto, esses dois aspectos (boas receitas e experiência prévia) parecem não ser suficientes para que o sucesso seja garantido no mercado das cervejas artesanais.

Assim, é necessário que se crie uma demanda pelo produto cervejeiro. Ou seja, é imperioso que uma boa receita vire uma boa marca cervejeira, para que ela consiga lograr um maior alcance de vendas e ter mais representatividade dentro do seu nicho.

Através de uma parceira como cigano, em uma cervejaria já montada e estruturada, acaba sendo muito mais fácil iniciar. A demanda pelo produto, todavia, acaba não sendo imediata. Faz-se necessário, portanto, forjar parcerias e ter muito afinco, de modo que seja possível começar a criar seu próprio espaço, com as receitas que são (ou que um dia já eram) bem aceitas, dando margem para algumas inovações e mais inserções em outros rincões cervejeiros ainda não tão explorados.

O cervejeiro cigano, ou a cervejaria cigana, é antes de tudo, um ícone da bravura de quem é capaz de fazer cerveja artesanal. Não vou vangloriar o “espírito empreendedor”, muito menos tecer críticas na leva do “custo Brasil”, isso seria apagar toda a propulsão difusora da cultura cervejeira que os “ciganos” são capazes de provisionar ao mercado da cerveja artesanal.

O ambiente de trabalho nas cervejarias ciganas é propriamente o conceito de coworking no sentido mais “clássico” do termo. Coworking pode ser sucintamente definido como um modelo de trabalho que se baseia no compartilhamento de espaço e recursos de produção, reunindo pessoas que não trabalham necessariamente para a mesma empresa ou na mesma área de atuação, podendo inclusive reunir entre os seus usuários os profissionais liberais e usuários independentes.

Acredito que pela mera repartição ou compartilhamento de um mesmo espaço, ainda que não haja troca de informações, de receitas ou de qualquer outro dado de produção, já há o coworking entre a cervejaria “mãe” e a cervejaria “cigana”. Dividir o mesmo espaço, por vezes, operarem em compras coletivas com o intuito de diluir os custos de frete e transporte, e por terem uma dinâmica de trabalho minimamente parecida, em funções das escalas e dos ajustes de horários e de demais elementos de produção, pode levar a crer que há uma simbiose laboral entre os dois entes cervejeiros retratados.

Cervejarias Ciganas Famosas

Como já brevemente citado na seção anterior, é importante destacar que nem todo cervejeiro cigano, ou toda a cervejaria cigana, é, necessariamente, desconhecido (a). Pelo contrário, muitos cervejeiros desbravadores no cenário nacional foram e/ou ainda são ciganos, muito embora já tenham conseguido um alcance nacional expressivo.

cervejaria dogma
FOTO: postada em www.cesaradames.com

Existem 3 casos que parecem ser emblemáticos no mundo cervejeiro, que denotam ciganos (alguns que ainda se mantém ciganos até hoje), com bastante sucesso: os casos da Cervejaria Dogma, Cervejaria EverBrew e da Dude Collective Brewing.

A história da Cervejaria Dogma praticamente se confunde com a história da cerveja artesanal no Brasil, e não seria errado afirmar que eles foram os pioneiros na inserção dos novos estilos de IPA no mercado brasileiro, com os lançamentos aclamados da Citra Lover, e, principalmente, da sua melhor e mais famosa cerveja até hoje, a Rizoma.

A Dogma manteve por um bom tempo uma pequena produção em estrutura própria, em seu Brewpub localizado na região central de São Paulo, capital, mas a maior parte de sua produção era até pouco tempo centrada na StartUp Brewing Co., em Itupeva, interior de São Paulo. A StartUp foi a primeira startup cervejeira do Brasil que funciona não somente como fábrica de bebidas, mas também como provedora de tecnologia e aceleradora para marcas cervejeiras ciganas.

No entanto, a Dogma conseguiu expandir e construir sua própria fábrica, na Mooca, na capital paulista. Ela é um exemplo de cervejaria que se aproveitou das benesses de ser cigana por um tempo, capitalizou-se, e hoje em dia tem sua própria estrutura de fabricação. Esses são os passos usualmente seguidos por quem começa a ser cigano, com o intuito de posteriormente se estabelecer com uma planta própria.

A EverBrew também concentra (a maior parte) de sua produção na StartUp Brewing Co. Ela é uma cervejaria, assim como a Dogma, que sempre investiu em rótulos inovadores, e se consolidou no mercado lançando boas NEIPA’s. Sua série Ever (Mass, Mont e Maine) sempre foi muito bem recepcionada, e teve uma boa projeção nacional no decorrer dos anos (já tendo sido cigana antes na cervejaria Cuesta, e, posteriormente, na cervejaria Dádiva, todas elas no interior do Estado de São Paulo). Ela também possui um pequeno Brewpub em Santos, litoral paulista, onde algumas poucas cervejas são produzidas apenas para consumo local.

Por fim, não poderíamos deixar de falar da vedete e mais nova queridinha nacional, a Dude Collective Brewing. A Dude Coffee já era uma sociedade empresarial bem estabelecida no ramo de torrefação de cafés especiais e resolveu expandir seus negócios para abarcar uma outra paixão do seu mentor, o torrefador/cervejeiro Jocemar Gross. Assim, surgiu a ramificação cervejeira denominada de Dude Collective Brewing. O lançamento da marca (cervejeira) é recente! Conta com aproximadamente um mês, e mesmo assim, o alcance e as respostas encontradas para as cervejas produzidas foram ótimos!

Impende destacar que a Dude Collective Brewing já havia contribuído (ainda que indiretamente) com seus cafés de torra “mágica” em algumas cervejas, principalmente em sua parceria com a Salvador Brewing Co. (Essa sim, uma cervejaria com fábrica própria, na mesma cidade em que a Dude Collective Brewing está instalada). Assim, ela foi pavimentando parcerias (ainda que não exatamente no modelo de “coworking cigano de cervejarias”) para estreitar mais ainda seus laços com o mercado cervejeiro propriamente dito.

Apesar de ser uma estreante no mercado (cervejeiro), ser cigana (eles produzem na Cervejaria Pio X, de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul – por vezes, estilizada como Pio Xº – para emular a sonoridade de “Pio Décimo”) e não ter uma demanda propriamente cervejeira, a Dude Collective Brewing já está fazendo bonito no cenário nacional, em grande destaque com suas cervejas que levam café na receita!

Certamente, existem muitos outros exemplos de cervejarias ciganas famosas no cenário cervejeiro nacional, mas, dada a limitação de espaço, as mais memoráveis (no meu requintado gosto) e mais representativas foram citadas. O mais importante, no entanto, é poder denotar como ser cigano é algo viável, tanto no viés econômico quanto na faceta qualitativa da questão, e os exemplos dados reforçam essa teoria.

Saideira

Um único pormenor que pode ser citado, como encerramento do debate, é o fato de alguns cervejeiros caseiros tentarem a transição para ciganos sem muito planejamento, algo que pode vir a ser a derrocada de algo que nem sequer se iniciou de forma mais efetiva.

O grande problema é achar que todos os custos serão tirados logo na primeira “fornada”, e que para tanto ele pode colocar preços e margens que representem essa retirada de investimento. Por mais que seja mais atrativo financeiramente ser cigano, isso não significa um baixo custo, significa apenas um capital inicial menor, se comparado com o investimento total de toda estrutura de uma planta cervejeira produtiva. Simplesmente não ter demanda, e colocar sua receita de cerveja caseira como cigana a preços de cervejarias já consolidadas é algo que tende ao fracasso no curto prazo.

Não obstante, gostaria de encerrar dizendo que o cervejeiro cigano é sempre um bravo, e que a modalidade de coworking viabilizada pelas cervejarias “mães” é sempre uma possibilidade de crescimento conjunto dentro desse mercado em expansão.

Recomendação para degustação

Falar em cervejaria cigana e não lembrar de algo que remeta, efetivamente, aos ciganos é algo difícil! À minha mente, veio logo a imagem de Sidney Magal cantando: Sandra Rosa Madalena, que tem como subtítulo: A Cigana, mais propício que isso impossível!

Saúde a todos os ciganos, cervejeiros ou do nômade povo Rom (ou Sintos – nomes dos povos ciganos originários).

Apreciem!

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

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A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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