Saudações, cervejeiros corajosos!
Vou começar o texto de hoje com uma pergunta: você teria coragem de beber uma cerveja da Backer?
Caso você não recorde que cervejaria é essa e o que houve com ela, o texto de hoje servirá para rememorar e para anunciar que ela está de volta.
Talvez essa não seja uma boa notícia…
Vamos trazer novamente os fatos centrais da maior tragédia cervejeira nacional e tentar desvendar se há parâmetros seguros para que a cerveja da Backer volte a ser comercializada, e, bebida.
Então, segure-se na poltrona e venha comigo lembrar de alguns fatos cervejeiros marcantes sobre a cervejaria Backer.
A maior tragédia cervejeira do Brasil
Em breve resumo dos fatos: o caso da cervejaria Backer é a maior tragédia cervejeira já ocorrida em território brasileiro.
Usualmente, uma produção cervejeira, dentro dos parâmetros adequados, é segura e não oferece riscos à saúde humana. Dito isto, há de se considerar o caso em tela como uma excepcionalidade para a cultura cervejeira artesanal como um todo.
Em janeiro de 2020, pouco antes da explosão da pandemia da COVID-19, o Brasil foi assolado pelo caso Backer. Foram 10 mortes diretamente confirmadas; e 19 outras pessoas com sequelas em decorrência de produtos cervejeiros contaminados, totalizando 29 vítimas.
Por meio de perícia técnica foi constatada a contaminação da cerveja Belorizontina (os famigerados lotes L1 1348 e L2 1348) com dietilenoglicol. Um solvente orgânico, tóxico, que ao ser ingerido pode causar diversos problemas hepáticos, inclusive, nos casos mais graves, a morte.
O Agente Contaminante: Dietilenoglicol
O dietilenoglicol (DEG), ou éter de glicol, responsável pela contaminação mencionada, é um composto orgânico de fórmula química C4H10O3.
Trata-se de um solvente orgânico de uso bastante amplo, e até mesmo comum, no meio industrial. É miscível com água e solventes polares tais como os álcoois. Também é miscível com éteres. Possui uma aparência viscosa, é inodoro e com um gosto levemente adocicado.
Apesar da amplitude do seu uso industrial, na produção cervejeira, ele tem um uso bem direcionado: resfriar a bebida (mosto) após a sua fervura. Tem a função anticongelante ao ser utilizado nas serpentinas que ladeiam os fermentadores, antes que o líquido chegue até eles.
Não é muito comum que ele seja utilizado na produção cervejeira, sendo mais usual o uso do álcool comum (etanol, na proporção de 30% misturado em água) ou o propanoglicol, um outro álcool não-tóxico.
Ainda assim, quando se usa o dietilenoglicol como agente resfriador, ele não tem contato direto com o líquido (que virá a ser cerveja). Esse, portanto, é o maior mistério do caso da Backer: como o dietilenoglicol entrou em contato com a cerveja?
Não se sabe se havia algum vazamento nas serpentinas ou se o solvente resfriador foi inserido de maneira proposital e com vilania no produto final (cerveja) em alguma etapa de produção. São perguntas ainda sem respostas, mesmo dois anos após o desastre.
A intoxicação do caso da Backer ocasionou a chamada “síndrome nefroneural”. Os sintomas incluíam náusea, vômito e dor abdominal. Nos casos mais graves evoluiu para insuficiência renal, alterações neurológicas e morte.
Cerveja que virou caso de polícia
Os três sócios da cervejaria Backer, que na verdade é uma marca de outra cervejeira, denominada de “3 Lobos”, foram denunciados pelos seguintes crimes: “condutas de vender, expor a venda, ter em depósito para vender, distribuir ou entregar a consumo produto que sabiam poderia estar adulterado”. Conduta tipificada no parágrafo 1º-A do artigo 272, do Código Penal (CP).
Também foram denunciados por “deixar de comunicar à autoridade competente e aos consumidores a nocividade ou periculosidade de produtos cujo conhecimento seja posterior à sua colocação no mercado”. Redação do artigo 64, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Além disso, 7 engenheiros e técnicos de produção foram indiciados por homicídio culposo e lesão corporal culposa (quando não há intenção de matar, diversamente da modalidade dolosa). Os processos criminais ainda não foram concluídos.
Após dois anos, o que houve foi a condenação da cervejaria em processo administrativo em 5 milhões de reais. Nenhuma das vítimas foi indenizada, muitas delas ficaram com sequelas permanentes, com a funcionalidade do rim (ou dos rins) com prazo de validade entre 7 e 10 anos, e na iminência de hemodiálise permanente.
A Backer paga apenas um auxílio para cobrir as despesas médicas. Muito pouco diante da gravidade e da repercussão do caso.
O retorno da produção cervejeira da Backer
Mesmo com todo o imbróglio jurídico que orbita sobre o caso, a Backer conseguiu autorização para voltar a comercializar suas cervejas.
Na verdade, um de seus rótulos, provavelmente o mais famoso, a cerveja Capitão Senra, uma Amber Ale, já estava sendo vendida e comercializada há mais de um ano.
A cerveja estava sendo produzida de maneira cigana (leia mais aqui sobre essa modalidade de produção) na cervejaria Germânia, na cidade de Vinhedo, no interior de São Paulo.
Desde 8 de abril de 2022 todas as licenças e alvarás para a produção cervejeira da Backer foram liberados pelos seguintes órgãos: Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH), Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Corpo de Bombeiros de Minas Gerais.
Assim, toda a estrutura produtiva do parque cervejeiro, bem como também o denominado “Templo Cervejeiro”, anexo de bar e restaurante que serve de apoio à cervejaria, estão totalmente aptos para funcionar.
A Fiscalização e a Liberação
Com todas as liberações de saúde e segurança dada pelos órgãos competentes fica o questionamento: quem acredita que dessa vez não ocorrerá o mesmo problema?
A justificativa dos órgãos de fiscalização é que a empresa atendeu às exigências para garantir a segurança fitossanitária de seus produtos (cervejas), no que se refere à questão dos tanques de fermentação e nos demais equipamentos utilizados.
A principal mudança na fase de produção efetuada para se adequar às exigências técnicas foi o fato que a cervejaria substituiu em seu processo o fluido refrigerante por solução hidroalcoólica. Solução que contém água e álcool, quando nos casos de contaminação relatados 2020 era utilizado o dietilenoglicol.
Os técnicos do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) garantem que visitas técnicas vem ocorrendo na planta de fabricação desde novembro de 2021 e que há coletas semanais de cada lote produzido e dos respectivos fluidos refrigerantes utilizados na produção.
Como esse é o principal foco de contaminação na tragédia experimentada pela Backer os técnicos concluíram que todas as alterações necessárias foram feitas e que a produção de cervejas no local (e não mais fora, em outras cervejarias como já vinha acontecendo) poderia ser liberada integralmente.
O comunicado da cervejaria
O comunicado da Backer, após a liberação dos órgãos competentes, centra-se em dois pontos.
O primeiro deles concerne à questão das adequações sanitárias exigidas pela fiscalização. Eles alegam que cumpriram todos os requisitos impostos e, portanto, estão aptos a fabricar novamente cervejas e a reabrir o seu “Templo Cervejeiro”. Em termos estritamente legais, não há o que se discutir.
O segundo ponto do comunicado após a liberação diz respeito à cervejaria alegar que se tratou de “um infortúnio pontual”. Nesse quesito, há de se apontar a estranheza que tal ponto do comunicado pode causar. Não é um “simples infortúnio” uma contaminação causar a morte de várias pessoas e deixar outras mais com sequelas para o resto da vida.
Soa como uma minimização da culpa evidente que a cervejaria tem em toda essa tragédia. A reboque disso, a Backer argumenta que voltando à ativa ela será capaz de continuar prestando assistência financeira às vítimas e a pagar as multas impostas.
Tal argumentação economicista soa ainda muito menos digna de confiança (beirando o absurdo!) quando se sabe que as vítimas mortais até então não foram indenizadas pelo ocorrido. Tampouco possuem qualquer previsão de serem reparadas. Sob o argumento de que o funcionamento da Backer gera renda e move a economia local, repete-se mais uma vez a premissa pavorosa do: mais empregos e menos direitos.
Parece que mais uma vez, no Brasil, o capital sobrepujou a Justiça (social).
Saideira
Como diria o sábio: eu não tenho vida de video-game para sair gastando por aí!
Isto é: não posso morrer e reviver (dar respawn) a hora que eu quiser. Apesar de eu ser um gato (miau! minha mãe me diz isso todo dia), não tenho 7 vidas para desperdiçar por aí com cerveja que pode, eventualmente, vir a estar contaminada (como um dia esteve).
Ou seja, não arriscaria jamais, em tempo algum, beber uma cerveja da Backer após a tragédia ocorridas em 2020. Nem de graça!
Aliás, as cervejas da Backer nem são tão boas ou excepcionais assim, sequer valem o risco inserido no contexto trágico. Contudo, como a produção foi liberada, rapidamente a veremos novamente nas gôndolas de supermercado.
Por mais que se argumente que “todos os requisitos fiscalizatórios” foram cumpridos e tudo mais, não há como se confiar, ao menos para mim, que suas cervejas são seguras para o consumo humano.
O retorno da Backer parece ser precoce, gera desconfiança e os responsáveis pela tragédia não foram minimamente punidos, tampouco repararam os atos atrozes que cometeram.
Quem quiser arriscar, que faça por sua conta e risco… mas, eu não recomendo!
E você?
Tem coragem de beber uma cerveja feita pela Backer?
Recomendação Musical
Se estamos falando de algo altamente tóxico, a música mais adequada para o momento Backer é o ícone dos anos 2000, da banda de Alternative Metal, System of a Down: Toxicity!
Por mais que o termo Toxicity (toxicidade) na música ser utilizado em um sentido muito mais político, social e econômico, no contexto da Backer, ele pode ser transmutado para algo muito mais literal e letal para sintetizar a maior tragédia cervejeira já ocorrida no Brasil.
Muita saúde a todos!