Salve! Cervejeiros!
Às vezes, tenho a impressão de viver em um mundo hedonista, puramente hedonista. Algo muito bem espelhado no mundo cervejeiro e na cultura cervejeira “leiga” de um modo mais amplo.
Quando falo em um mundo hedonista é no sentido de que basta você gostar de algo para que aquilo se transforme imediata e instantaneamente em algo bom.
Da mesma maneira, basta que você não goste para que aquela determinada coisa seja sumariamente julgada como algo ruim. Como se ela passasse a não prestar automaticamente porque os seus sentidos mais imediatos a rejeitaram.
Essa dualidade maniqueísta (que brinca com coisas opostas) do que se gosta e do que se desgosta acaba sendo o fio da balança para determinar o que é bom e o que é ruim.
Nada mais poderia soar tão errado quanto isso. Ainda mais em se tratando de cervejas. Então, hoje vamos falar sobre basicamente essas três categorias.
Existe a cerveja boa, e por “boa” (ou algo “bom”) vamos traçar critérios objetivos para tanto. Do mesmo modo que se existe o céu deve existir o inferno, se existe a cerveja “boa”, por conseguinte, também deve haver a cerveja ruim (também estipulada em critérios objetivos).
Como “terceira via” (a essa altura do campeonato, natimorta), temos a cerveja que cada um gosta. Isto é, a cerveja que você gosta não é por si só (ou, melhor dizendo), baseada no seu gosto, boa ou ruim. Ela será boa ou ruim independentemente disso.
Vamos então, “sem cagar regras”, definir o que é uma cerveja boa, uma cerveja ruim e qual aquela que você gosta (aliás, sobre isso, melhor que você mesmo me conte nos comentários).
Cerveja boa é cerveja sem defeitos
Vou iniciar a presente seção me valendo de um preceito socrático/platônico de definir algo por aquilo que ele não é.
Uma boa cerveja não é uma cerveja que você gosta. Você pode gostar de cervejas ruins, e pode não gostar de cervejas boas. Seu gosto é algo totalmente irrelevante para definir se uma cerveja é boa.
Isso não significa que você não possa beber apenas as cervejas que agradam o seu paladar. Se você prefere assim, seja feliz dessa maneira. Você pode simplesmente ter um “paladar infantil” e pouca perseverança para explorar outros estilos. Ninguém vai te julgar por isso (mentalmente, eu irei sim, lide com isso).
Definitivamente, uma boa cerveja é uma cerveja sem defeitos. Talvez soe um pouco óbvio dizer isso. Contudo, nem sempre os defeitos em uma cerveja são facilmente identificados pela maioria dos consumidores. Até mesmo por aqueles consumidores mais frequentes de cervejas artesanais ou especiais.
Estar inserto na cultura cervejeira, de uma maneira mais ou menos intensa, não faz você por si só um conhecedor, isso, porventura, só te faz um bebedor de IPA contumaz. Além das famigeradas “horas-copo” como alguns se referem à prática da degustação, algum conhecimento técnico e teórico é necessário para conhecer uma boa cerveja.
Os defeitos que passam despercebidos
Por vezes, um bebedor frequente de cervejas artesanais agrega em si uma qualidade pouco assertiva. Ele além de frequente é desatento. Basicamente decora as notas mais pontuais dos estilos que ele mais gosta, sem se aventurar muito em outras searas.
Isso faz com que ele tenha uma ampla recorrência estilística nas propriedades cervejeiras, e deixe passar sem perceber alguns defeitos que as cervejas possuam.
Como dito anteriormente, uma boa cerveja é uma cerveja que não possui defeitos, levando em consideração o estilo ao qual ela pertence. Essa consideração deve ser feita tendo-se em conta que em alguns estilos uma determinada nota de aroma ou sabor é um defeito (off-flavor), e noutros estilos ela acaba sendo um acerto (on-flavor).
No entanto, em termos de panorama geral, é correto se dizer que a maioria dos consumidores não sabem reconhecer os defeitos mais comuns nas cervejas, como, por exemplo, oxidação, clorofenol (gosto de água sanitária), DMS (ou Dimetilsulfureto – gosto/sabor de vegetais cozidos), diacetil (rançoso, parecendo manteiga de micro-ondas), acético (acidez avinagrada), dentre muitos outros defeitos indesejáveis na cerveja.
Cerveja ruim independe do preço
Como objetivamente eu defini “cerveja boa” como sendo a cerveja que não possui defeitos. A cerveja ruim pode ser objetivamente definida do modo inverso: a que possui defeitos.
Todavia, não vou reprisar quais são os possíveis defeitos, embora possamos indicar de modo mais abrangente os mencionados off-flavors, bem como também produtos (maltes, lúpulos, leveduras) de baixa qualidade ou velhos, e também a questão da não aptidão para o estilo proposto, o cervejeiro queria fazer uma IPA e fez uma Saison…
(É raro, mas acontece muito).
Importante notar que, ao contrário das crendices populares, uma cerveja ruim não necessariamente é uma cerveja barata. Claro que as cervejas de massa tendem a ser ruins, porque são feitas em larga escala, com insumos baratos e de baixa qualidade, utilizados para baratear de maneira impactante o produto final.
Porém, existe muita cerveja artesanal cara que: ou não corresponde ao estilo proposto (e, portanto, é uma cerveja ruim) ou vem com defeitos tão gritantes que deveriam sofrer um recall imediato. Tais cervejas são caras e mesmo assim são péssimas.
A diferença entre elas e uma de massa qualquer é que você sabe que a da prateleira do supermercado é ruim a priori (você não precisa experimentar para saber que não é grande coisa). Já a cerveja artesanal pomposa ruim te custa caro e vem em uma bela apresentação para despistar. Então, uma cerveja ruim pode ser cara ou ser barata, você só vai saber depois de bebê-la (no caso das artesanais/especiais).
Não existe estilo de cerveja ruim
Percebam que as palavras são sutis. Eu disse que existe cerveja ruim, e expus os motivos para os quais uma cerveja pode ser considerada ruim. Todavia, não existe um estilo cervejeiro que possa ser considerado ruim. Uma vez que é ele que serve de norte para julgar uma cerveja ruim.
Claro que você pode até não gostar de um ou mais estilos cervejeiros. Eu mesmo não gosto de sours, nem de Shandy/Radler, por exemplo. Muita gente não gosta de IPA’s por considerá-las muito amargas, ou não gosta da torra nas Stout’s.
Os exemplos fornecidos são totalmente normais. O importante é ter em mente que não gostar de um estilo em particular não faz com que todas as cervejas daquele estilo sejam ruins (só porque não te apetecem).
Da mesma maneira, nem toda IPA vai ser boa só porque você gosta de IPA, aliás, só o que tem é IPA mequetrefe sendo lançada por 50 indultos o latão!
A grande lição a ser absorvida é que a cerveja pode ser ruim, por vários motivos, e um deles pode ser justamente a sua falta de adequação ao estilo para o qual ela foi delineada.
Contudo, o seu gosto particular não é capaz de tornar um estilo cervejeiro ruim por si só. Ele não é capaz sequer de tornar uma cerveja ruim! O gosto jamais poderá ser tido como a métrica de uma cerveja, seja ela boa ou ruim.
Seu gosto não faz uma cerveja ser boa… nem ruim
A questão de alguém gostar ou não gostar de uma cerveja, seja porque a acha doce demais, ou amarga demais, ou aguada demais, ou muito encorpada, muito ácida, ou qualquer atributo de aparência, aroma ou sabor, não muda o status da cerveja. A cerveja será boa ou ruim independentemente do que cada um acha dela individualmente.
Se ela está encaixada no estilo, não possui nenhum defeito (não tem off-flavor) e exibe todos os requisitos objetivos para ser uma boa cerveja, por mais que você ou qualquer beer influencer a odeie, não vai fazer com que ela seja ruim. O único fato concreto é que você não a aprecia, e ponto final.
O simples ato volitivo de alguém gostar ou não gostar não faz a cerveja boa. As pessoas precisam entender que cerveja boa não é aquela que você gosta, tampouco é a que cabe no seu orçamento. Existem cervejas boas que você não vai gostar e existem cervejas boas que você jamais será capaz de beber ou pagar para beber.
Não há como se fugir dessas duas constatações apenas com aquela consolação hedonista que diz: cerveja boa é a que agrada o seu paladar e cabe no seu bolso.
Mais uma falácia repetida à exaustão, que alguns teimam em achar que é verdade.
Saideira
Existem muitas cervejas e muitos estilos cervejeiros. Muitas cervejas são boas e você não vai gostar. Muitas cervejas são ruins e você vai amar.
Muitas outras são péssimas, você vai pagar caro e sequer vai conseguir perceber o quanto que elas não valem aquilo que foi cobrado.
Avanço um pouco mais, não é porque você gosta de algo que isso se torna algo necessariamente bom. Não há espaço para o hedonismo cervejeiro, no qual o “prazer” que a bebida proporciona necessariamente se transmuta em um selo de qualidade.
Bom que existe espaço para todos, para os que só bebem cervejas boas e gostam delas. Para os que bebem qualquer cerveja desde que caiba no orçamento. Também tem aqueles que bebem cerveja ruim achando boa.
Derradeiramente, “é sobre isso, e tá tudo bem”, já dizia o meme!
Recomendação Musical
Se tem a cerveja boa, necessariamente, deve haver a cerveja ruim.
Se existe o bom, por óbvio, existe o mal.
Se existe o céu, existe o inferno também!
Beber cerveja boa é o céu! Beber cerveja ruim (pagando caro) é o inferno!
Então, vamos de Heaven and Hell, da icônica banda de Heavy Metal, uma das precursoras, o Black Sabbath.
Nome homônimo do álbum de estreia do estupendo vocalista americano Ronnie James Dio (o criador da saudação do chifre com as mãos), no qual o temos interpretando essa canção magnífica!
Saúde!
4 Comments
Sempre cirúrgico. Parabéns!
Valeu, amigo! Agradeço a leitura e o comentário! 😁😁😁😁
perfeito
o cervejeiro artesanal e um apreciador de sabores.
muitas vezes criticados por aqueles que gostam de “cerveja com gosto de cerveja” (meu pai por exemplo). aprecio (as vezes não) provar os mais diversos estilos e passei a gostar mais de uns do que de outros. vejo “avaliadores” detonando boas cervejas e até mestres cervejeiros dando nota máxima em suas próprias cervejas pra aumenta pontuação em aplicativo ( muitas vezes um lixo).
o problema e que falta humildade de não saber o que está bebendo e saber que pode julgar o trabalho dos outros.
Verdade, amigo! Você tocou em um ponto bem sensível, a própria pessoa que produz dando nota máxima na sua cerveja… Vejo uma certa incoerência ética nesses casos. Principalmente para aumentar nota em App…
Obrigado pela leitura e pelo comentário! Um abraço!