TERRA ESTRANGEIRA: Cenas de um confronto lusitano

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Sintra – Portugal, 15 de Julho de 2006

Eu ainda estava obcecado com a ideia de saber o que tinha dentro da tal escrivaninha no corredor da casa da rua da cerâmica, em Almoçageme, mas precisava de uma chave para abrir o móvel. Foi ai que observei, subindo a escada que leva ao andar de cima, por trás de uma estante, um buraco na parede. Parecia um lugar para uma janela ou coisa que o valha. Pensei que talvez, por algum motivo qualquer, ali pudesse estar escondida a chave que me faria abrir a tal escrivaninha. Mas não tive tempo de empurrar o móvel, porque rapidamente, surgiu a ideia de se fazer um churrasco para apresentar algo típico da culinária brasileira (e que logicamente a gente soubesse fazer) para os dois casais de amigos (australianos e irlandeses) que viajavam conosco. Foi então que Andrew (que é de Dublin) me chamou pra tomar uma legitima escura irlandesa à beira da piscina, o que me pareceu muito mais convidativo do que ficar empurrando móveis velhos e pesados pela casa.

Lula, meu cunhado, muito mais experiente do que eu na arte ancestral de assar  carne, se prontificou em amaciar a picanha com um molho que leva cerveja, mostarda e um pouco de sal; além, é claro, de acender o fogo e vigiar a fibra da carne no calor. Eu com o talento culinário que herdei de meu pai (que também só domina a complexa técnica arcaica do ovo frito) tive a incumbência de procurar um açougue e comprar a bebida.

Perto do corpo de Bombeiros da bela e pacata vila de Almoçageme (espero que não esteja rebaixando o status político da localidade, mas não sei se é um município ou só um distrito), na Avenida Brandão de Vasconcelos, que segue em direção à Praia da Adraga, tem uma praça, um coreto e uma Igrejinha. Nessa praça algumas mulheres colocaram umas bancas (tabuleiros como eles dizem por aqui) e vendem verduras e frutas. Algumas delas (as mais idosas) usam preto da cabeça aos pés, trajando meiões que chegam até os joelhos. Isso parece ser uma antiga vestimenta mediterrânea porque lembro de ter visto senhoras vestidas de modo semelhante na Grécia e em Capri, no sul da Itália, quando andei por aquelas bandas ainda no século passado.

O fato é que quando eu estava passando em frente ao coreto da praça, na minha busca pelos mais chamativos pedaços de carne e pela preciosa cerveja escura irlandesa (que Andrew havia localizado num pequeno supermercado ali por perto), vi duas crianças, uma menina e um menino, que pareciam ter a mesma idade, talvez nove ou dez anos. As vezes pareciam gêmeos de tão parecidos que eram. Eles discutiam com aquela intensidade emocional que só irmãos sabem ter quando alguma peleja começa. De repente, assim, bem de supetão mesmo, os dois começaram a se bater.

Do nada, o garoto virou o corpo e deu um chute forte na coxa lateral da menina. Ela nem se mexeu. Só soltou um grito de dor e se posicionou com os punhos em formação de defesa. A luta não tinha aquela beleza plástica holywoodiana de um combate entre Bruce Lee e Chuck Norris, tipo O Vôo do Dragão, mas tinha lá seus atrativos coreográficos. Parei para a assistir o desfecho do combate, menos para saber o seu resultado e mais intuitivamente motivado pela estranheza da disputa. Pensei logo no começo algo politicamente incorreto: “a menina vai correr”.

Sem sombra de dúvidas não podemos subestimar as meninas do século XXI. A garota revidou a pancada, atingindo com o pé, o flanco esquerdo do garoto que quase caiu de banda com o impacto da porrada.

De longe, parecia uma luta de Tae Kwon Dôo de tanta pezada que vazava naquele vai e vem. Um vai pra cá e vai pra lá de pernas, mas sem o inconfundível jogo de cintura da capoeira. Sim. Era uma disputa eurocêntrica. Os dois não saltavam, nem quicavam, nem balançavam de lá para cá tentando se esquivar do chute do seu oponente.

Havia uma dureza no contato. Um foco na pancada. Uma obsessão no choque muito mais do que na esquiva.

Logo, o irmão (sim, só podia ser o irmão dela porque só os irmãos se tratam assim com essas bordoadas apaixonadas) aponta para a menina, diz algo que eu não consigo entender, tanto pela distância em que me encontro quanto pelo sotaque da região central de Portugal, e…

Caramba!

Fazia tempo que eu não via um chute assim.

Deu quase pra sentir a dor, apesar do meu sistema nervoso estar separado do da garota por essa coisa misteriosa chamada espaço.

Acho que o moleque deve ter atingido em cheio o rim ou o fígado, não sei bem porque não consigo ter uma noção exata de que tipo de órgão ocupa que lugar dentro do corpo humano. Mas deve ter sido mesmo algum dessas localidades anatômicas que, quando param de funcionar, matam gente, porque a garota caiu no chão chorando e gemendo enquanto o menino, assustado com a força do próprio chute e com as consequências de sua vitória sobre uma oponente tão resistente, disparava numa fuga louca pela lateral da igreja.

Se esse for mesmo um modelo padrão de uma “briga-lusitana-entre-irmãos- de-quase-a-mesma-idade” devo concluir que em Portugal a turma briga diferente. Sei que do ponto de vista das regras de um raciocínio indutivo essa conclusão não tem absolutamente o mínimo valor probabilístico, posto que uma única experiência pontual, do ponto de vista quantitativo, é só um grau maior do que zero. Mas se isso vai comprometer o rigor antropológico de minha empreitada pela terrinha, pouco importa. O fato é que parece haver alguma diferença entre o modo como as crianças brigam em Portugal e o modo como isso acontece no Brasil.

Explico. No Brasil a molecada pula muito. O mais importante parece ser desviar do golpe e não acertar. A ideia fundamental aqui é não levar pancada, se conseguir acertar uma bem no meio das fuças do oponente, ótimo! Mas se não, a luta termina empatada e não há problema. Cada um vai para a esquina da sua casa xingando a mãe do outro e prometendo um revide no próximo encontro. Talvez, quem sabe, seja mesmo por causa desses empates que surgem rivalidades ancestrais, que passam de geração à geração nas famílias brasileiras.

Como na capoeira, briga e dança no Brasil andam juntas e a ideia de que o mais importante é derrubar o oponente não parece ser de bom tom. Eu, particularmente adoro ver uma boa roda de capoeira, mas tenho arrepios toda vez que, sem querer, passo com o controle remoto num canal de esportes, no qual dois mastodontes musculosos e suados se enroscam num chão de um ringe de UFC.

Aquela luta em Almoçageme foi diferente de todas as lutas entre crianças que eu já presenciei no Brasil (e bem diferente das pouquíssimas nas quais eu mesmo já participei).

Diziam os cronistas coloniais que os índios da costa do Nordeste (os potiguaras em particular) não gostavam de comer o cérebro dos Franceses porque eles eram meio frouxos. Ajoelhavam-se e começavam a gemer e a chorar, pedindo perdão.

Isso compromete o guerreiro.

Imagine se um grande guerreiro Potiguara comesse um cérebro de um sujeito desses! Iria ficar tão apático e quando um lateral esquerdo da seleção brasileira na copa de 2006 arrumando as meias enquanto via o gol de cabeça da equipe oponente. Os espanhóis e portugueses parece que eram diferentes. Eram bons de comer (num sentido culinário).

Firmes no combate, raivosos, violentos, não abriam nunca para o inimigo. Não sei se há verdade histórica nisso e espero que a embaixada da França não faça algum tipo de objeção a minha humilde interpretação, mas, a julgar pela briga que vi em Almoçageme, é bem provável que os cronistas coloniais, por mais imaginativos que fossem, tivessem razão (ao menos, nesse quesito).

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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