Saudações, amantes flamejantes da cultura cervejeira!
Hoje vamos falar de um dos procedimentos mais singulares e peculiares da cultura cervejeira, referimo-nos ao Bierstacheln!
Bierstacheln é uma palavra em alemão que não possui uma tradução direta nem para o inglês, tampouco para o português. Pode ser gravada tanto como Bierstacheln, ou sem o “n” no final: Bierstachel. Já que a primeira palavra é o plural e a segunda é o singular.
Em alemão, ela é a junção de dois substantivos. Intuitivamente, percebe-se que a primeira parte da palavra, Bier, significa, cerveja. Já a segunda parte, Stachel (ou Stacheln, no plural), em uma tradução direta, pode significar o verbo incitar (quando usada sozinha), contudo, também pode se referir a um substantivo, algo como: espeto, ou, espinho, agulhão; quando combinada com outras palavras.
A junção das duas palavras não expressa exatamente o procedimento cervejeiro propriamente, ainda que possa jogar algum vislumbre do que se trata: espeto de cerveja, ou “espeto cervejeiro”.
Ainda assim, pela mera tradução ao pé da letra, não se depreende exatamente do que se trata. Por causa disso, o texto de hoje traz mais informações sobre o assunto.
Dessa forma, parte-se de uma breve explanação histórica, passando por alguns cuidados necessários para que ele seja feito corretamente, debatendo os melhores estilos em que ele se enquadra e finalizando na análise sensorial trazida pelo procedimento.
Assim, preparem-se para uma coluna cervejeira com muita informação e bastante peculiaridades da cultura cervejeira. Aprenda como uma cerveja pode ser bebida “a ferro e fogo”!
O que é fazer um Bierstacheln?
Resumidamente, o Bierstacheln é o encontro de um espeto de ferro (liga de aço, tecnicamente falando), aquecido, sendo inserido em uma cerveja. A princípio, parece ser um procedimento simples, trivial, e que choca a maioria dos brasileiros, afinal, onde já se viu beber “cerveja quente”?!
Todavia, não é tão simples assim. De toda maneira, deixo abaixo o vídeo de um desses procedimentos (eu mesmo já fiz um desses, mas a qualidade do vídeo não ficou tão boa, então preferi um mais didático).
Uma das dificuldades em compreender bem o Bierstacheln é que 99% das fontes estão escritas em alemão. Não há um texto sequer em português, vídeos, existem alguns, mas na mídia escrita, fonte primária de pesquisa, não há. Por esse motivo, considero esse texto pioneiro no assunto.
Uma dificuldade adicional no procedimento em tela é a instrumentalização necessária para que ele seja realizado. O próprio instrumento, que leva o nome do procedimento intraduzível, é um produto que não é vendido comercialmente no Brasil, haja vista que não faz parte da nossa cultura cervejeira.
Outra dificuldade adicional é utilizar um bico de Bunsen ou um maçarico gastronômico para aquecer o Bierstachel. No entanto, isso é algo facilmente contornável, pois um fogão convencional pode ser utilizada para essa finalidade. Sem prejuízo algum para o resultado final.
A história da cerveja gelada encontrando o aço fumegante
A história do Bierstacheln remonta à Idade Média, tempo histórico em que o ofício dos ferreiros era de grande importância para a sociedade. Outro elemento que deve ser levado em consideração é que, culturalmente, na Europa, costuma-se beber o que os brasileiros consideram “cerveja quente”, ou seja, qualquer coisa acima de zero grau Celsius.
Na Idade Média, principalmente no inverno e nas regiões mais frias da Europa, a cerveja era acondicionada muito gelada para que seu consumo fosse feito de maneira imediata. Em virtude dessa condição de temperatura, cabia aos ferreiros esquentar a cerveja, para que se consumisse o líquido sagrado na temperatura ideal.
Diferentemente da atualidade, em que guardamos as cervejas e temos a opção de servi-las na temperatura ideal, naqueles tempos, ela era acondicionada muito fria, e precisava ser aquecida. (No Brasil, isso soa como um sacrilégio!)
Por isso, os ferreiros mergulhavam uma barra de ferro (o exemplar medieval do Bierstachel) em brasa na cerveja. Apesar de antiga, em seu país de origem, a tradição secular ainda é muito popular entre alguns amantes da cerveja hoje.
O Bierstacheln é recomendado especialmente com cervejas fortes e escuras, uma vez que esse processo suaviza o sabor, pois o açúcar residual é caramelizado pelo ferro quente e isso cria um sabor único e muito intenso. A junção da cerveja gelada e a espuma quente leva a uma explosão de sabor no paladar.
Os instrumentos necessários para o procedimento
Certamente, na Alemanha, terra natal do Bierstachel, e também nos Estados Unidos (beer spike), não é difícil encontrar o instrumento principal do procedimento “embrasado”. Ainda que os preços não sejam exatamente convidativos, há uma oferta farta do material necessário.
O Bierstachel nada mais é que uma haste de aço inoxidável com cerca de 40 cm de comprimento. Acoplado a um cabo de madeira que permite um manuseio seguro. Ele deve conter alguma protuberância na extremidade, circular ou piramidal, já que algo pontiagudo tende a não reter calor suficientemente.
Eu montei, artesanalmente, o meu Bierstachel soldando um prumo de pedreiro a um amolador de facas.
Além do instrumento metálico, é necessária uma chama contínua para que ele seja devidamente aquecida.
Existem 3 possibilidades básicos de isso ser atingido. De forma mais controlada e técnica, por meio de um Bico de Bunsen. Contudo, a não ser que você seja químico ou trabalhe na área, provavelmente não terá um em casa.
Uma forma mais acessível é através de um maçarico gastronômico. A depender da potência, é fácil atingir a temperatura recomendada (algo acima dos 200 graus Celsius). A maioria dos maçaricos gastronômicos (os de charutos são menos potentes para essa finalidade) consegue uma chama contínua satisfatória.
Contudo, a forma mais acessível e menos indicada, é por meio de uma boca de um fogão doméstico. Apesar de ser a forma encontrada em 99% dos lares, ela é a menos indicada por uma razão trivial: a maioria dos fogões sequer chegam à temperaturas superiores a 150 graus Celsius. Alguns até atingem 250 graus, mas são a minoria.
De toda maneira, se não tiver outra forma contínua de calor, a boca do fogão pode atingir o objetivo, ainda que demore algum tempo para isso.
Cuidados ao fazer o Bierstacheln
Existem alguns cuidados básicos que se deve ter ao se utilizar o Bierstachel e ao realizar o procedimento.
Um dos cuidados básicos é a higienização do instrumento. Ainda que o procedimento tenha temperaturas acima dos 70 graus Celsius (temperatura de uma autoclave, capaz de esterilizar o ambiente), matando assim os micro-organismos, é bom se atentar para alguns detalhes.
É possível que depois de ser esquentado, o Bierstachel venha a apresentar sinais de ferrugem. Assim, recomenda-se a limpeza antes e depois da utilização, lavagem com água e detergente neutro. Ademais, pode-se utilizar, eventualmente, spray antiferrugem ou desengripante (WD-40 ou White Lub).
Ao realizar o procedimento, um dos principais cuidados a se tomar é que não se mergulhe o Bierstachel por um tempo maior que o necessário na cerveja. Recomenda-se uma imersão de aproximadamente 3 a 5 segundos, não se ultrapassando o tempo máximo tolerável de 10 segundos.
Uma imersão por tempo superior ao sugerido pode trazer aromas e sabores desagradáveis, amargos e torrados à cerveja. Algo que finda por descaracterizar a premissa inicial do procedimento.
Sem embargo, sugere-se também que no líquido sejam feitos movimentos leves e circulares, buscando tornar homogêneo o contato do Bierstachel com a cerveja.
Tomando-se as referidas cautelas, o procedimento tende a ser um sucesso.
Estilos cervejeiros recomendados para o Bierstacheln
Nem todos os estilos cervejeiros são recomendados para receberem a imersão em brasa do Bierstachel. Na verdade, apenas uma pequena minoria de cervejas se presta a tal serviço. As cervejas escuras que possuem um teor alto de açúcar residual são as mais recomendadas.
Para além do teor de açúcar, as cervejas mais escuras e de estilos alemães são as que melhor se adequam ao procedimento, tanto em termos sensoriais quanto históricos de adesão.
Creio que as cervejas do estilo Bock são as principais candidatas a receberem a inserção do Bierstachel. Principalmente, os subestilos mais potentes, como Doppelbock, Weizenbock e Eisbock. Quanto mais escura e mais doce, melhor a cerveja se tonará com o procedimento sugerido.
Contudo, caso se queira tentar algo diverso, pode-se tentar fazer o Bierstacheln em outro estilo alemão, o Rauchbier, que por ser deveras maltado e já defumado, tende a se capitalizar com as transformações ocasionadas no procedimento.
Em estilos não-alemães, eu recomendaria a tentativa em Dubbel’s e Quadrupel’s, na escola belga, e em Russian Imperial Stout’s mais doces, mas que não contenham adjuntos. Contudo, em virtude do distanciamento histórico entre as escolas propostas, pode ser que o resultado não seja tão satisfatório.
Saliente-se que, quanto menor a carbonatação da cerveja, melhor o resultado obtido, uma vez que, após o Bierstacheln, formar-se-á uma espuma quente e cremosa na cerveja.
Transformações sensoriais trazidas pelo Bierstacheln
Talvez o ponto de maior importância consista em saber o que o Bierstacheln é capaz de trazer de diferente à cerveja depois de executado. Não se trata apenas de ter um trabalho desnecessário, o procedimento altera profundamente as qualidades organolépticas da cerveja após efetuado!
Primeiramente, por ser um instrumento metálico a base de ferro (uma liga de aço), o Bierstacheln ocasiona a oxidação da cerveja. Claro que, em termos puristas, isso seria considerado uma insanidade, já que a oxidação é um off-flavor na cerveja. Contudo, diante dos demais efeitos, essa qualidade adquirida acaba sendo desprezível.
Secundariamente, e de modo até mais importante, por causa da temperatura, o Bierstacheln ocasiona uma explosão de reações de Maillard. Basicamente, elas são reações químicas entre um aminoácido ou proteína e um carboidrato redutor, obtendo-se produtos que dão sabor, odor e cor aos alimentos.
No caso das cervejas submetidas ao procedimento, em virtude da grande quantidade de açúcar residual, o que acontece é a caramelização brusca e imediata. Tal alteração nas características da cerveja confere uma explosão de sabores, principalmente tostados e cristalizados, tornando-os bem intensos e destacados.
De maneira análoga, é como se a cerveja inicial fosse o caldo de cana, e o resultado, após o Bierstacheln, fosse o melaço. São características que agregam oxidação, Maillard, cristalização e alta carga de tosta no açúcar, criando uma cerveja totalmente diferente da original após a realização do procedimento.
Sensorialmente, é uma cerveja totalmente diversa, mais complexa em seus aromas e sabores. Agregam-se notas sensoriais mais complexas e de maior persistência à cerveja após o Bierstacheln. Aliás, são notas que raramente podem ser percebidas em cervejas que não foram submetidas ao espeto fumegante.
Somente quem já provou uma cerveja após o Bierstacheln que sabe descrever o que é associado ao conjunto após o procedimento.
Saideira
O Bierstacheln, definitivamente, não é um procedimento fácil de ser feito. Requer detalhes e uma instrumental não tão fácil de se conseguir. Tudo isso se deve, majoritariamente, ao fato de que ele não pertence à nossa cultura cervejeira. O que não quer dizer que não possa vir a ser incorporado em um futuro próximo.
Decerto, ele é uma experiência única, que transforma profundamente as propriedades sensoriais da cerveja. Por isso mesmo, recomenda-se, para quem tenha curiosidade, que tente fazer por si, transportando-se imediatamente a uma taberna medieval germânica.
Após a primeira tentativa, você definitivamente vai querer aproveitar a experiência com mais frequência. Com seu próprio Bierstachel, você pode reviver essa maravilhosa tradição cervejeira alemã a qualquer momento.
Em resumo, aprecie a tríade sensorial da cerveja após o Bierstacheln: o aroma do caramelo, a espuma quente e a cerveja gelada.
Um exercício cervejeiro único!
Recomendação Musical
A recomendação musical de hoje, infelizmente, não se refere ao conteúdo do texto!
Trata-se de uma homenagem póstuma a Steve Grimmett, vocalista da banda de heavy metal inglesa Grim Reaper, falecido segunda-feira passada, 15 de agosto de 2022.
Ele era o dono de uma das vozes mais icônicas do NWOBHM, vertente musical que, certamente, tem expoentes muito mais famosos, como Iron Maiden (incrível como o Steve Grimmett fez o teste quando o Bruce saiu da banda e foi preterido a Blaze Bayley) e Judas Priest.
Ao lado do Dokken, o Grim Repaer é provavelmente uma das bandas mais “injustiçadas” do heavy metal oitentista. De todo modo, ainda que um tanto quanto subestimado e bem menos conhecido, Steve, dono de uma voz inconfundível e de alcance singular, foi responsável por verdadeiros hinos do metal nos anos 80.
Brindo-vos com Rock You to Hell, uma das canções de maior sucesso do grupo e do cantor, e que sua memória permaneça viva e imortalizada em seus agudos potentes!
3 Comments
Onde você conseguiu comprar o “espeto”?
Parabéns pelo conteúdo. Linguagem clara e conteúdo amplo. Conprei um Bierstachel hoje. Testei e fiquei vislumbrado com o resultado. Depois fui procurar textos sobre e achei o seu.
Que bacana! Espero que tenha sido uma boa experiência!
Saúde!