BIBLIOBUNKER: Ouvintes alemães! Discursos contra Hitler

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Ouvintes alemães! Discursos contra Hitler

Autor: Thomas Mann

Editora: Zahar

Ano: 2009

221 páginas

Confesso que fiquei espantando quando li, na biografia que Peter Gay escreveu sobre Freud, notícia da adesão entusiasmada de Thomas Mann aos esforços alemães de guerra durante a conflagração mundial de 1914 à 1918. É certo que, quando o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do império Austro-húngaro foi executado em um atendado terrorista, a euforia com a guerra contagiou corações e mentes por toda a Europa. Mesmo assim sempre me parece curioso quando pessoas do quilate intelectual de um Thomas Mann não percebem o caráter sombrio e sinistro de toda guerra e atendam ao apelo irracional da violência patriótica ao primeiro rufar dos tambores de Ares.

O fato é que aquele que é considerado o maior romancista alemão do século XX caiu na falácia ideológica da guerra rápida, limpa e heroica, que tomou conta da Alemanha em 1914, mas, apesar disso, não continuou por muito tempo entorpecido pelo narcótico do nacionalismo germânico.

Mesmo antes da ascensão de Hitler ao poder em 1933, o liberal Thomas Mann já se projetava como voz de oposição ao avanço do nazifascismo em sua terra Natal. Junto a seu irmão, Heinrich Mann, participou ativamente da disputa intelectual travada na Alemanha pelo espólio de Nietzsche, quando autores simbioticamente vinculados ao partido nacional socialista, como Alfred Baeumler, escreveram textos nazificando o autor de Assim falava Zaratustra.

Já com um prêmio Nobel no currículo e exilado nos EUA, Thomas Mann recebeu um convite da BBC para iniciar, em Outubro de 1940, uma colaboração ativa no esforço de guerra contra o nazifascismo. Mann deveria usar todo o seu talento literário em discursos que seriam retransmitidos aos seus compatriotas na Alemanha.

No começo os textos eram telegrafados e lidos por funcionário da BBC em Londres, depois, passaram a ser gravados com a voz do próprio escritor no departamento áudio visual da NBC em Los Angeles e transferidos em um avião, em rolos de fita magnética, para Nova York, onde eram retransmitidos por telefone para Londres, regravados e posteriormente retransmitidos diante de um microfone para todo território alemão.

O livro que a Zahar editou traz uma compilação desses discursos, transmitidos mês à mês entre outubro de 1940 e novembro de 1945. Traduzidos por Antonio Carlos do Santos e Renato Zwick, com apoio e subsídios do Instituto Goethe e do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, os discursos de Mann trazem um painel bem interessante dos desdobramentos da guerra, percebidos por um alemão exilado que acompanhava as notícias do front a partir da perspectiva de quem vivia no continente americano.

Obviamente a gente tem de colocar algumas coisas em contexto, como, por exemplo, uma óbvia idealização dos EUA e da democracia norte americana (normal para quem estava na situação de exilado em terra estrangeira) e um anticomunismo bem evidente, que, curiosamente, vai sendo arrefecido na medida em que a URSS entra na guerra ao lado dos aliados e resiste heroicamente à incursão dos exércitos nazifascistas na frente Leste.

Para quem se interessa pela história da segunda guerra é bastante instigante perceber, através dos discursos de Mann, como as notícias dos acontecimentos mais importantes do cenário militar, como por exemplo o cerco à Inglaterra, a derrota do Afrikankorps no norte da África, a batalha de Stalingrado e a invasão da Sicilia, são percebidos do lado de cá do Atlântico. O tom dos comentários do escritor transita de um pessimismo amargurado (no início do conflito) para um otimismo melancólico na medida em que a derrota de seu país natal  vai se configurando inevitável.

O melhor é ver toda a verve literária de Mann sendo usada para detonar Hitler e seus lacaios. Ler um “Thomas Mann pistola” pregar: “ódio aos canalhas que transformaram o nome da Alemanha numa abominação diante de Deus e de todo mundo”; ou mesmo qualificar Hitler como “bufão homicida”, “ator de feira”, “intelecto miserável”, “alma deteriorada” ou mesmo um prosaico “vagabundo dos infernos”; é uma delícia para quem, como eu, entende bem o profundo sentido público da ação política dos intelectuais.

Outro ponto bem interessante do livro é perceber o modo como a consciência do holocausto chega ao público naqueles anos sinistros. Já em Novembro de 1941 Mann faz referência à “coisas indizíveis que acontecem na Rússia e na Polônia contra os judeus”; em Janeiro de 1942 ele faz menção a “400 jovens judeus holandeses” que teriam sido levados para Alemanha para “servir de objeto de pesquisa com gás venenoso”. Posteriormente, em Junho de 1942, Mann corrige o número e o objetivo da ação dos nazistas afirmando que teriam sido 800 jovens judeus que teriam sido levados à Mauthausen para serem executados com gás.

A medida que as notícias vão surgindo, a consciência do terror nazista vai ganhando proporções cada vez mais dramáticas. Em setembro de 1942, por exemplo, Mann faz menção a 500 mil judeus mortos no gueto de Varsóvia e à notícia de que a Gestapo teria matado 700 mil judeus, sendo que 70 mil só na cidade de Minsk, na Bielorussia. O horror diante de um discurso de Goebbels em que o ministro da propaganda Nazista afirma categoricamente que o objetivo dos nazistas é: “(…) aniquilar judeus” e que “Se o exército alemão for obrigado a se retirar, ele vai faze-lo exterminando pelo caminho até o último judeu da terra” abre alas para a aterradora revelação, já em Janeiro de 1945, das “fabricas de morte” que se espalharam pela Europa ocupada.

Thomas Mann encerra seus discursos com a derrota da Alemanha, sem triunfalismos, cortado por um sentimento ambíguo: de um lado a alegria partilhada pelo fim de Hitler e seus lacaios, por outro, com uma tristeza profunda pelo destino da Alemanha e pelos horrores que a guerra produziu.

No fim das contas ele ainda cede ao otimismo quando, em Julho de 1943, diante da invasão da Sicilia, do bombardeio de Roma pelos aliados e da queda de Mussolini, comete um erro de avaliação de longo prazo ao apostar que: “o nacional socialismo está tão morto quanto o fascismo. Ele será enterrado profundamente e também profundamente esquecido”.

Infelizmente, o que os discursos de Thomas Mann nos lembram, 78 anos após o fim da hecatombe nazifascista, a julgar pela quantidade de grupos neonazistas e de movimentos neofascistas ganhando folego junto a auspícios cada vez mais evidentes de que um nova guerra mundial se aproxima, é que talvez os conteúdos não superados da história retornem sempre, mas não como farsa, e sim, como catástrofe.

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PS .: Lembrando aqui que esse foi mais um ótimo livro que adquiri na Livraria Távola, no shopping Cidade Verde. Um excelente lugar para se garimpar bons textos.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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