Quem conheceu, como Marize Castro, registra a notabilidade do homem. Tarcísio, da Livro 7, Recife. Meu amigo Renato Ferraz deve ter lhe roubado um naco e tanto de mais valia literária lendo livros sem pagar naqueles bancos, salvo engano, no meio das estantes.
Não conheci Tarcísio – posso tê-lo visto – mas em tempos de falta absoluta de reverência a quem se dedica a enlevos como livros, inteligência, sensibilidade, racionalidade e quejandos, esses luxos da era pós-pabulagem, presto minha singela homenagem.
Porque sem ter conhecido o cara, frequentei-lhe o quanto pude o estabelecimento comercial-literário. E me ocorreu, foi lá que adquiri o que pode ter sido o terceiro livro marcante de minha incipiente coleção de livros – esse fetiche do qual kindle algum conseguirá me apartar. Era “O Cinema dos Meus Olhos”, uma bela coletânea de textos do crítico cinematográfico… Vinícius de Moraes, o próprio. Textos quase adolescentes, com o futuro poeta consagrado, admirado, banido, hoje certamente deplorado pelos seguidores da ignorância em rede, tecendo loas ao cinema mudo e jogando pedras no pano branco do então inovador cinema falado.
Pra vocês verem que os poetas, não sendo brutos, também podem ser reacionários – ao menos em arte, perdoemos. Nada que chegue às raias do pano encardido dessa atualidade de agora.
Mas voltemos ao Tarcísio que não conheci, à livraria que frequentei (como Renato, quase sempre sem comprar, que o $ era curto e simbólico) e a este livro que lá adquiri como que para justificar, pagar com atraso, as tardes alugadas ao convívio das prateleiras.
“O Cinema dos Meus Olhos” esvaía-se em contemplações das estrelas do cinema sem fala e com muito rosto. O livro em si era um mimo, edição da Companhia das Letras, uma capa moderna, grafismo triangular. O prazer de percorrer a mancha de texto, a finura que só os leitores mais fanáticos conhecem de dobrar e desdobrar a aba da orelha, explorar os silêncios retumbantes das folhas de rosto. A consciência de que aquele era o terceiro de uma série de livros que explicariam uma vida – toda ela à frente (e não atrapalha em nada o fato de este ser um dos livros que perdi ao longo da vida, como tantos).
Livro 7 era isso, uma aura a mais do que a concorrente da Rua da Imperatriz onde adquiri o livro mais lido que já passou pelas minhas mãos, “Feliz Ano Velho”, o testemunho-pop-superação escrito pelo jovem Marcelo Rubens Paiva que em 1984 soava como música de hit parede e que talvez por isso mesmo foi lido, só o meu exemplar, por mais uns 11 amigos da época. Neste ponto parei de contar, mas os empréstimos continuaram.
Na Livro 7 de aura à parte também comprei meu manual de sociologia, o clássico universitário de Sebastião Vila Nova, o livro que marcou meu ingresso na vida universitária. Não era um livro, era uma porta se abrindo e oferecendo outras rotas. E mais: não comprei e não li por falta de verba, mas lembrar o Tarcísio que não conheci por meio da lembrança da Livro 7 que frequentei é como espalhar livros numa trilha imaginária suspensa no ar. Como se estivesse a arremessar cartas em forma de pedras literárias no vácuo do crescimento pessoal e somente sobre elas caminhar – cada passo, uma pequena história, uma etapa, um momento formador de uma vida.
Essa é minha trilha da Livro 7, vereda para um futuro que faça cair por terra as boçalidades desse presente ilegível. Vai pra você que não conheci, Tarcísio; como para Renato, que mora aqui ao lado no coração do amigo; assim como para Vinícius, querido ou esquecido; e até para o Paiva comprado no concorrente. Tarcísio e sua livraria estarão sempre abertos, 24h, nas vielas comerciais do afeto que nunca cerram as portas.