Saudações, cervejeiros!
No texto de hoje vamos falar mais uma vez sobre uma predisposição (não tão nova assim), mas que tem efeitos e desdobramentos bem diretos na qualidade das cervejas quando as cervejarias fazem tal “mudança de chave”. Para a maioria delas, é o famoso “pulo do gato”, em termos de expansão, investimentos e, claro, lucratividade.
Vender-se para um conglomerado maior é o sonho de 99 em cada 100 cervejarias artesanais, no Brasil e no mundo. E o cervejeiro (dono de cervejaria) que, porventura, negar essa pretensão, ou é hipócrita ou é um lunático idealista (em um sentido bem pouco hegeliano do termo, eu diria).
Sim, criar uma empresa e depois vendê-la para um grande grupo empresarial não é nenhuma novidade, em nenhum ramo de atuação comercial ou industrial, muito menos no cervejeiro, existem muitos e muitos exemplos que podem (e alguns serão) citados no decorrer desse texto.
O que eu farei, para dar um ar mais jovial à escrita, é traçar o paralelo com o que tem ocorrido com o ambiente futebolístico brasileiro, em que muitos clubes estão deixando de ser associações sem fins lucrativos, ou até mesmo migrando do antigo modelo de “clube-empresa”, para o modelo de SAF, isto é, Sociedade Anônima do Futebol.
Por mais que o modelo de negócio nas cervejarias não seja exatamente de uma SAF (ou por não ser anônimo, ou, por, obviamente, não envolver futebol) as pretensões são as mesmas, e por vezes, os resultados sonhados também não se concretizam… por causa disso, toda parcimônia é necessária para abordar esses casos.
Assim, convido-os a essa jornada embalada a gols, caneladas, cerveja e futebol.
Saúde!
Um sonho cervejeiro: quero ser grande
É meio óbvio que nenhum cervejeiro vai admitir, mas seu grande sonho é transportar suas receitas da época de cervejeiro caseiro para o grande público, para as multidões, ser ovacionado pelas suas criações e reconhecido por isso. Mutatis mutandis, é a mesma glória de jogar uma Copa do Mundo que um jogador de futebol tem.
Contudo, não é um desiderato fácil de ser alcançado. Todos sabemos que a cultura cervejeira artesanal é minúscula, não arrasta as multidões e infelizmente ainda não possui palcos gigantescos de apreciação. Assim, por conseguinte, ela orbita entre nano, mini e micro cervejarias. Esse é o rescaldo maior de toda a cultura cervejeira aglutinada.
Inobstante, o sonho não pode ser, de maneira alguma, recriminado ou obstado apenas por ele ser o que é. Não há problema algum em ser grande, em ter públicos maiores, e claro, atingir, simultaneamente uma maior quantidade de pessoas, ampliando o seu espectro de atuação.
Só que pelas características intrínsecas, já mencionadas, da própria cultura cervejeira esse sonho é um sonho distante. É um sonho que depende da intervenção de um terceiro muito maior para que possa se realizar. Depende de um investimento vultoso que apenas os grandes conglomerados empresariais do gênero podem aportar.
Entre a cruz e a espada: entre ter alma de cervejeiro e a mentalidade dos (grandes) corporativistas
Na maioria das vezes, sejamos sinceros, quando o investimento estilo SAF vem para uma pequena cervejaria (que já desponta e se destaca há vários e vários anos no mercado cervejeiro artesanal) ele equivale a vender a alma ao diabo. Por mais crua e direta que pareça ser essa afirmação, ela sempre se consubstancia em perder, ainda que apenas parcialmente, as rédeas do processo produtivo e os desígnios criativos das receitas.
Toda e qualquer autonomia prometida ou idealizada pode ser tolhida ou nulificada apenas por uma decisão de um conselho deliberativo, afinal, o profissionalismo e a mentalidade corporativa são quem dão as regras a serem seguidas. No final das contas, a premissa deliberativa e administrativa imperante não é errada, ela apenas pode (e geralmente tende) a confrontar com a alma artesanal do cervejeiro.
Daí a analogia posta de se vender a alma ao diabo é mais do que certeira. Tal proposição equivale a um clube de futebol ter que mudar as cores e os desenhos do seu escudo ou emblema em prol de uma perspectiva mais vendável, algo mais comercial, algo que, de fato, venha a conquistar as multidões.
E, não se enganem, as multidões não querem nada muito elaborado ou rebuscado, qualquer coisa envolvida em uma roupagem da moda ou chamativa talvez baste para alavancar as vendas, por mais que o conteúdo seja de uma qualidade um tanto quanto questionável.
O mercado e seus desígnios, quem irá contra, não é? Que o diga a Colorado, a Wäls, e mais recentemente a Season, a Dogma (e suas mil franquias) e também a Dude Brewing Co., quem diria não é?
A malfadada qualidade cervejeira: ou a troca dela por resultados…
Grandes investimentos demandam aquilo que se costumou denominar de quid pro quo, ou seja, “isso por aquilo”, outrossim, quem quer sorrir tem que fazer sorrir. Transmutando essa perspectiva para o mundo cervejeiro temos que isso equivale a mexer com algo muito caro à comunidade cervejeira, mas que diz muito pouco em termos de alcance de resultados corporativos de alto padrão de exigência: a qualidade das cervejas produzidas.
Recai-se no eterno dilema do: quando o cervejeiro era “pobre”, não tinha como investir em insumos de alta qualidade. Nem em técnicas muito apuradas para executar suas receitas, ou talvez até em uma planta própria de fabricação das suas cervejas. Dessa forma, tinha que migrar de galho em galho, de cervejaria em cervejaria como cigano.
Quando, finalmente, o investimento de altas levas chega, a qualidade não pode ser a prioridade, já que a roda da economia tem que girar, e ela sempre tende a girar noutros turnos que não nesses descritos. Parece que os eixos de rotação são divergentes por si mesmos, não se conectam na realidade que agrega resultados e qualidade. Parece que trocar o esmero pela qualidade em prol de resultados mais vistosos e populares é algo plenamente aceitável pelos investidores.
Claro, que sempre alguém distantemente vai vociferar: e o exemplo da Goose Island? Que se vendeu para a InBev e hoje ainda é aclamada pela Bourbon County e suas trocentas milhões de criações diversas, com barris raríssimos e tudo mais.
Certamente, esse é um exemplo salutar, é a exceção que confirma a regra. Já que em uma infinidade de outras “SAF” cervejeiras, um time tinha que conseguir ganhar, não é? Marcar seus golaços e continuar a prezar pelo alto padrão de qualidade cervejeiro, mesmo depois da mudança de rumos nos investimentos e no controle acionário da empresa.
Diante de tantas outras SAF que temos em termos cervejeiros, esse exemplo é um oásis no deserto. É algo raro, algo magnífico, mas, também, algo quase que único. Seria bom que outras se inspirassem nesse exemplo, mas, não é o que se costuma ver, principalmente, nos últimos ventos de mudanças.
Saideira
No mundo do futebol, virar SAF equivale a ter uma tributação mais vantajosa, além de possuir maior transparência, com regras claras de governança e com fiscalização acionária, o que deixa o negócio mais interessante e seguro para os investidores, além, de claro, aportes de valores milionários e até mesmo bilionários às vezes.
Todavia, nem sempre tanto dinheiro e tanto investimento se traduzem, necessariamente, em títulos, glórias e campeonatos ganhos. Por vezes, os resultados são medianos, apenas midiáticos, quando não, servem para lavagem de dinheiro… ou seja, nem tudo são flores e dinheiro não é capaz de resolver tudo.
No mundo cervejeiro, “virar SAF” equivale a ter também um investimento de alto padrão, ter mudanças nas diretivas criativas e claro, ter um alcance de público bem maior.
Com essas mudanças, quem tende a sofrer, ou, ao menos, ter alguma instabilidade, é a qualidade das criações cervejeiras. Elas tendem a ser afetadas de modo direto, principalmente no curto prazo.
Ademais, tal qual na analogia futebolística, os resultados também não são nenhuma garantia de sucesso…
Recomendação Musical
Dessa vez não tem muito o que enrolar, vamos de País do Futebol, música executada por MC Guimê (atualmente, cancelado após o BBB 23) e Emicida.
https://www.youtube.com/watch?v=bWnS2dIDgQA
Saúde!