Enquanto o clássico do cinema E o vento levou embalava corações naquele ano de 1936, o mundo já respirava o ar da 2ª Guerra Mundial. Em Natal, as calçadas do Grande Ponto ouviam papos e falácias de almas errantes, boêmias. O Integralismo e a derrota do movimento comunista na capital potiguar, em novembro de 1935 ainda rendiam discussões. O Brasil, mergulhado na ditadura Vargas, vivia na literatura sua segunda fase modernista: período rico na produção poética e na prosa. Os versos livres e a liberdade temática preocupavam-se com o destino dos homens. O período favorecia o antiacademicismo. Mas foi nessa década, precisamente em 14 de novembro de 1936, que o então professor e escritor Luís da Câmara Cascudo reuniu intelectuais da província em seu casarão na avenida Junqueira Aires, para fundar a Academia Norte-rio-grandense de Letras (ANL).
Foi com este lide que iniciei minha matéria em celebração aos 70 anos da ANL, publicada na edição 17 da Revista Preá. Lembro da sugestão do editor Tácito Costa: “É uma instituição que, apesar dos pesares, merece destaque”.
E lá estava eu, mero estagiário de jornalismo, no escritório do advogado e ainda hoje presidente da ANL, Diógenes da Cunha Lima.
Colhi as informações e escrevi oito páginas de texto para uma das melhores edições da revista, que contou ainda com colaborações de Marcos Antônio Felipe e Anchella Monte; Jóis Alberto em resgates das memórias de Eugênio Netto; Carlão de Souza escrevendo sobre música popular; Manoel Onofre Jr, sobre Zila Mamede; entrevista com Affonso Romano de Sant’Anna; a coluna de poemúsica de Carlos Gurgel sobre Neguedemundo; e mais duas cidades mapeadas: Florânia e São José de Mipibu, também sob meus rabiscos.
E cá estou, doze anos depois. Muito dos escritos da edição permanecem o mesmo: a poesia de Marize Castro resenhada na revista, os espaços urbanos da Cidade Alta… Mas a ANL mudou, se modernizou. Coisa de poucos anos pra cá, fruto de novos membros com sede de novidade.
HOMENAGENS E HOMENAGEADOS
E uma dessas novidades, criada há três anos, é a homenagem da Academia a instituições e jornalistas residentes na terra de Cascudo.
Essas homenagens são divididas em três categorias. O Troféu Mecenas Potiguar será entregue aos empresários Antônio Gentil, Paulo de Paula e Marcelo Queiroz.
A Medalha Palmas Acadêmicas Câmara Cascudo é entregue a pessoas e instituições que contribuíram para a cultura potiguar neste ano. Receberão esta honraria o imortal Ivan Lira de Carvalho; o escritor, pesquisador e colunista deste site, Thiago Gonzaga; o professor Kokinho; Zilda Lopes do Rêgo; a Orquestra Sinfônica do RN; e o Instituto Pró-Memória de Macaíba.
Já o Mérito Acadêmico Agnelo Alves destaca o trabalho jornalístico na terrinha. E este ano serão agraciados o publicitário Bruno Giovanni, pelo Blog do BG; Leonardo Souza, pelo programa Rota InterTV; Alex Medeiros, blogueiro e colunista do Agora RN, também com programa na Rádio; e este humilde jornalista pelo trabalho à frente deste Papo Cultura.
SOLENIDADE
A programação tem início às 20h de hoje (14), na sede da ANL, ainda no histórico prédio da Rua Mipibu. Os homenageados serão saudados pelo juiz e imortal Ivan Lira de Carvalho. A celebração será abrilhantada pela Camerata de Vozes do RN e pelo Trio Musical Instituto Gentil, além da participação especial da Banda de Música Tonheca Dantas da Polícia Militar do RN. O acesso é gratuito.
HISTÓRIA DA ANL
A fundação da ANL foi uma resposta de Cascudo aos apelos da Federação das Academias de Letras. Assim como a Academia Brasileira de Letras, criada em 1896, a ANL também se emoldurou com base na Academia Francesa, a primeira do mundo, fundada em 1635.
Presente na data de fundação da ANL, Adauto Câmara, Edgar Barbosa, Januário Cicco, Otto de Brito Guerra, Antônio Soares de Araújo, Nestor Lima, Floriano Cavalcanti e Luís Gonzaga de Monte, entre outros.
O RN colecionava intelectuais de reconhecida capacidade. Mas faltaram nomes para preencher as 40 cadeiras (número inspirado na ABL) e apenas 25 imortais protagonizaram as primeiras vagas da ANL. Em 1943, o número era de 30 acadêmicos, alcançando, mais tarde “a tarefa realizada dos 40 e seus sucessos no tempo”, como afirmou Cascudo.
Mesmo fundador da Academia, Cascudo recusou-se a aceitar a presidência. Mais tarde também rejeitaria o convite para ser membro da ABL; convite enviado por votação unânime dos chamados imortais.
Segundo Diógenes da Cunha Lima, Cascudo alegou ser apenas um provinciano. Talvez daí venha a origem da frase “Sou um provinciano incurável”.
Cascudo seria o quarto representante potiguar na história da ABL. Os outros três são o médico e ficcionista, estudioso das artes e ciências, Peregrino Júnior; o historiador Rodolfo Garcia; e o jornalista e escritor Murilo Melo Filho.
Com a recusa de Cascudo, o bacharel em direito e escritor Henrique Castriciano foi eleito o primeiro presidente da ANL, tendo como secretários Adherbal de França e Edgar Barbosa.
Ativista pelos direitos da mulher, sobretudo no campo da educação (criou a Escola Doméstica de Natal), Henrique Castriciano escolhe patrona de sua cadeira a idealista, revolucionária e escritora Dionísia Gonçalves Pinto, ou Nísia Floresta Brasileira Augusta, como é mais conhecida.
A irmã de Castriciano, a poeta Auta de Souza, que morreu prematuramente aos 24 anos, também foi homenageada pela ANL como patrona da cadeira de número 20.
PATRONOS E AUSENTES
Além dos 40 patronos escolhidos quando da fundação da ANL pelos 40 primeiros ocupantes das cadeiras, houve mais de 90 sucessores ao longo dos 82 anos de história da Academia.
Muitos ficaram de fora, seja por derrotas em suas candidaturas, seja por rejeição ao convite ou por esquecimento da instituição. Casos de Deífilo Gurgel, Zila Mamede, Moacy Cirne…
Entre os imortais, estão padres, políticos, jornalistas, historiadores, artistas plásticos, folcloristas, cronistas, pesquisadores, médicos, juristas… Mas predominam mesmo os poetas.
E, tristemente, uma amarga maioria de homens. Entre os 40 patronos, três mulheres: Nísia Floresta, Isabel Gondim e Auta de Souza. Entre os 40 primeiros ocupantes, apenas Carolina e Palmyra Wanderley.
E o quadro parece não se alterar. Entre os mais de 80 sucessores, apenas mais cinco mulheres: Maria Eugênia Montenegro, Anna Maria Cascudo, Sônia Fernandes Ferreira, Diva Cunha e, mais recentemente, Leide Câmara.
PRIMÓRDIOS E DIFICULDADES
No início, ainda sem sede própria, as primeiras reuniões dos acadêmicos se davam em locais variados. O Instituto Histórico e o Atheneu foram os espaços mais usados.
Foi o então governador Sylvio Pedroza (depois acadêmico) quem doou o terreno na rua Mipibu para construção do prédio da ANL, inaugurado em 28 de junho de 1958, na administração de Manoel Rodrigues de Melo.
Hoje, sendo associação privada sem fins lucrativos, a ANL é mantida pelos acadêmicos. Por vezes recebe verba do Governo do Estado, mas sem regularidade. Alguns espaços do prédio são alugados e ajudam na manutenção.
PROJETOS EM 82 ANOS
Alguns projetos encabeçados pela ANL passam despercebidos pela imprensa, a exemplo da idealização do Presépio de Natal, com assinatura de Oscar Niemayer.
Também obra de Niemayer é a União dos Continentes, arcos em forma de chifre, localizado na BR 101, em Touros.
Muitos nomes pitorescos e históricos de cidades, bairros, etc, também foram mantidos graças a campanhas da ANL, a exemplo de Parnamirim, que estaria hoje com o nome Eduardo Gomes. Ou Monte das Gameleiras, Barra de Maxaranguape e Caiçara do Rio dos Ventos.
Um livro-revista é publicado, salvo engano, mensalmente com um rico conteúdo de crônicas, ensaios e artigos, sem que ninguém saiba.
ELEIÇÕES E CANDIDATURAS
As eleições para presidência da ANL acontecem a cada dois anos, sempre em janeiro. Em 82 anos de história, a Academia teve nove presidentes, eleitos por maioria de votos. Todos os acadêmicos podem ser votados e o voto é secreto.
Para o sistema de substituição da cadeira dos imortais cabe ao presidente declarar a vaga aberta após a morte de um dos ocupantes. A partir daí publica-se na imprensa e admitem-se candidaturas em até 60 dias. Por vezes a própria ANL sugere convites.
Os que pensam ser a obra literária o fator preponderante, estão enganados. O primeiro item analisado é a qualidade ética, segundo Diógenes da Cunha Lima. O segundo item é a exigência de livro publicado de reconhecido valor.
“A Academia está sempre vigilante em favor da cultura e trabalha com a colaboração do tempo. Costumo dizer que a ANL, como a antiga UDN (União Democrática Nacional) tem a eterna vigilância”, me disse Diógenes da Cunha Lima, ainda hoje presidente, doze anos atrás.