A minha alucinação é suportar o dia a dia
E meu delírio é a experiência com coisas reais
Belchior
Por Andreia Braz
16 de maio de 2024. Véspera do meu aniversário de 43 anos. Estou na cozinha lavando a louça do jantar enquanto escuto Belchior. Na sala, meu companheiro e minha enteada assistem tv e mexem no celular. Pouco tempo antes, estávamos na cozinha desfrutando de um café com bolo e tapioca na companhia de amigos e familiares. Uma noite chuvosa. Um clima de aconchego e paz. Daqui a pouco, vamos assistir a novela das nove, o remake de Renascer, cuja versão original foi exibida em 1993. Esse é um ritual que fazemos diariamente em família. Desde que começamos a namorar, eu e Francisco assistimos novela juntos (Pantanal, Amor Perfeito, Mar do Sertão).
Voltando ao meu momento na cozinha. Enquanto lavo a louça e planejo mentalmente as atividades do dia seguinte, sou tomada por uma sensação de alegria e paz. É como se algo me dissesse que estou no lugar certo, fazendo as coisas certas. Ou seja, estou exatamente onde deveria estar. Não sei se me fiz entender, meu caro leitor. Espero que sim. Enquanto lavava a louça e cantarolava as canções de Belchior, me veio à mente a ideia de escrever esta crônica. O intuito era partilhar um momento de felicidade genuína, de uma alegria que brota das coisas simples, das atividades do cotidiano (por que não?), por exemplo. O intuito era partilhar o sentimento de alegria e gratidão que me invadiu enquanto eu fazia uma tarefa corriqueira.
Sei que a rotina é entediante para alguns (para mim também, às vezes), mas sinto que ela é importante e me ajuda em diversos aspectos. Enquanto realizo algumas tarefas domésticas, por exemplo, aproveito para fazer planos, repensar questões importantes, elaborar textos mentalmente. O trabalho com revisão de textos, por mais prazeroso que seja, por vezes me deixa extenuada e, nesses momentos de cansaço extremo, fazer uma atividade doméstica é também uma forma de relaxar, de pensar em algo que não seja trabalho, responsabilidades, boletos e coisas do gênero. É um momento para fugir um pouco da realidade, digamos assim. Uma espécie de meditação forçada. Um encontro comigo mesma. O silêncio dessas horas me faz tão bem. Quando não quero silêncio, escolho um repertório musical que me agrada e deixo a música rolar solta enquanto lavo roupa/louça, limpo a casa… O cancioneiro é variado: Belchior, Gonzaguinha, Elis Regina, Alceu Valença, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque, Adriana Calcanhoto, Gal Costa, Vanessa da Mata, Clara Nunes, Maria Rita, Daíra, Chico César, Zeca Baleiro, Sérgio Sampaio, Luiz Gonzaga, Trio Nordestino.
Hoje, especialmente, estou mais reflexiva. Talvez seja a proximidade do meu aniversário, que geralmente envolve um misto de sentimentos. Se por um lado sei que estou ficando mais velha, por outro, um novo ciclo está se iniciando e com ele a possibilidade de conquistar novos espaços, realizar sonhos, conhecer lugares, pessoas. Adoro essa ideia paradoxal que me assalta a cada aniversário. Uma provocação existencial, eu diria. Acho que ela reflete um pouco a ideia do que é viver. Ao mesmo tempo que sentimos saudade do passado, de quem fomos, do que fizemos, do que sonhamos, de situações e/ou pessoas que estão distante, das que já partiram, temos a possibilidade de fazer tanta coisa nova, de enxergar a boniteza da vida, de encontrar um grande amor, de fazer novos amigos, de começar uma atividade física, de aprender um novo ofício, de descobrir um novo hobby, de ler um livro bacana, de ver um filme no cinema, de fazer uma viagem, de reencontrar um amigo ou parente que há muito não vemos. Afinal, “a gente é tanta gente onde quer que a gente vá”, como diz Gonzaguinha.
Nunca fui uma pessoa de fazer muitos planos. Jamais poderia imaginar como seria minha vida aos quarenta e poucos anos, por exemplo. Digo isso porque conheço gente que planeja todas as etapas da vida, mesmo que algumas coisas fujam ao roteiro original, como é de esperar. Sempre fui aquele tipo de pessoa que vai vivendo e deixando tudo fluir, sem grandes angústias e/ou questões existenciais. Deixo a vida me levar, como diria Zeca Pagodinho. Sem grandes preocupações com o futuro. Vivendo o presente. Algumas coisas, no entanto, foram fruto de escolhas conscientes. Não ter filhos foi uma delas. Casamento também não fazia parte dos meus planos e já estava acostumada à ideia de envelhecer sozinha, entre meus discos e livros, como diria uma canção interpretada magistralmente por Elis Regina. Os amigos estão sempre presentes nessas projeções de futuro, digamos assim.
Mas o tempo passou e hoje quando penso na velhice é sempre ao lado do meu companheiro. Questões como saúde, alimentação, moradia, lazer e atividade física fazem parte dos nossos projetos de vida. Pensamos na possibilidade de viver num sítio onde ele possa plantar, cuidar dos bichos, enquanto escrevo meus livros, cuido da casa… Uma tv e um rádio não podem faltar nessa casa. Uma casa com alpendre e uma rede preguiçosa pra deitar… Uma casa sempre à espera de visitas, de portas abertas para os nossos. Uma casa que tem sempre uma comidinha fresca e um café quentinho esperando quem vai chegar.
Voltando aos meus quarenta e poucos anos. Jamais imaginei que estaria tão feliz e cercada de pessoas tão especiais nessa fase da minha vida. Jamais imaginei que teria um livro publicado. Jamais imaginei que estaria trabalhando num programa de tv (há oito meses faço parte da equipe do programa “O forró já começou”, na TV Futuro, sob a batuta de Fernando Lucena e Kanelinha). E pensar que um dia sonhei em ser jornalista. Mas o amor às Letras falou mais alto. Essa é uma história para outra crônica. Jamais imaginei que estaria treinando Muay Thai com minha família (detalhe: o professor é meu sobrinho, Pedro Vitor). Jamais imaginei que estaria distante de algumas pessoas que um dia foram tão relevantes (parentes, amigos). Sinto falta de alguns encontros, almoços de domingo… Uma saudade cortante que às vezes me faz chorar. Mas, se por um lado, alguns se afastam, outros vêm para ficar. E assim é o ciclo da vida. Sigamos. Como diria Cazuza, “Dias sim, dias não / Eu vou sobrevivendo sem um arranhão / Da caridade de quem me detesta”.
E de todas essas vivências, o casamento está sendo a experiência mais incrível. E tudo aconteceu de uma forma muito espontânea. Foi uma decisão construída à base de diálogo, partilhas, afetos e, principalmente, do desejo de cuidar um do outro diariamente da forma como é possível para cada um. Afinal, não podemos esquecer das nossas limitações e das adversidades do dia a dia, que muitas vezes não deixam espaço para atitudes românticas, digamos assim. Mas existem várias formas de cuidar e demonstrar nosso amor pelo outro, disso não podemos esquecer, e o cotidiano vai revelando novas e surpreendentes maneiras de dizer eu te amo com gestos simples, de demonstrar o quanto o outro é importante, o quanto a sua presença é essencial à nossa vida. Fazer uma comida, escolher um filme ou uma série para assistir juntos, fazer uma caminhada juntos, indicar um livro, levantar mais cedo para preparar o café do outro. São coisas simples que fazem toda diferença no cotidiano e vão ajudando a solidificar o relacionamento porque também revelam o quanto o outro é importante, único.
E as surpresas não ficaram apenas na decisão de morar juntos. Nosso lar é também o de Rebeca, minha enteada. Uma menina adorável de treze anos que trouxe a leveza e o frescor da juventude para minha vida. Como é bom poder conviver com ela! Como é bom conversar bobagem com ela e fazer planos mirabolantes pra quando a gente tiver dinheiro (risos)! Como é bom dividir com ela a pipoca, a batata frita enquanto vemos algo na tv. Ela me trouxe também a responsabilidade de cuidar e educar. Mas com a parceria de Francisco tudo se torna mais leve. Além de pai e filha, eles são grandes amigos e o diálogo é a base dessa relação tão bonita que a cada está mais potente. É tão bonito ver os dois juntos falando de carros, treinando Muay Thai… Como é bom vê-la descobrindo coisas novas e planejando seu futuro. Como é bom vê-la desbravando o mundo através da arte, da leitura, dos novos amigos, da nova escola… Rebeca é sinônimo de afeto, cuidado. Ela sabe cuidar como poucos, apesar de tão jovem. Sabe a importância de ser colo quando o outro precisa. Jamais esqueço um momento em que fiquei doente e ela fez de tudo para cuidar de mim. Preparou suco, fez comida. Apesar da pouca idade, ela sabe que “o amor é um ato revolucionário”, como nos ensina Chico César. E por falar nisso, minha amiga Sarah Freitas disse uma frase que guardo sempre comigo e resume bem o que estou dizendo: “Amiga, você abraçou a maternidade de uma forma tão natural”. O amor e seus (des)caminhos…
Voltemos ao início do texto e aos sentimentos que me invadiram nesta noite chuvosa de quinta-feira. E o que mais eu poderia desejar no meu aniversário de 43 anos? Recorro ao mestre Belchior para responder tal questão: “Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte / Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte”.
8 Comments
O que sinto, enquanto leio Andreia, é a descrição de um lugar muito próximo ao meu. Andrea é minha vizinha do sentir. Ela vai da sensação de “uma noite chuvosa” a de ouvir “Alceu Valença” enquanto reflete sobre a vida, mas tudo isso no momento em que lava os pratos. Quanta sutileza o dia a dia nos trás e Andréia nos mostra. Isso é poesia.
Valorizar o simples é algo divino, quando estamos imersos em um ambiente bom tudo floresce. Feliz dia pra você! Obg por compartilhar sua alegria.
Que delicia ler tuas crônicas querida Andréia. Esta em especial, me fez sentir ao redor de uma mesa com a se bons amigos das Letras, enquanto a chuva canta suave nas janelas e nos galhos das árvores de um quintal. Delícia de momento cheio de graça e sabedoria que o cotidiano regado pelo amor espontâneo e sincero nos dar. Aûîébeté 🙌🏾 Gratidão
Andréia consegue trazer pensamentos profundos em simples situações. Estou impactada!
Ler Andreia Braz nessa manhã foi um respiro! Gratidão pela partilha da alegria em meio a rotina.
Andréia minha querida, ler suas crônicas é algo maravilhoso. Suas narrativas säo pérolas que exaltam o que tem de mais belo no ato da leitura e da escrita. Parabéns pelo aniversário! Parabéns por mais essa crônica maravilhosa!
Forte abraço.
🫶❤️
Ler Andreia Braz é sentir o viço que mora nas pequenas coisas, nos detalhes do cotidiano. Andreia faz brotar a vida em suas várias nuances, sempre com uma carga bem gostosa de emoção, feito uma brisa de incessante e leve sopro, como num sonho. Obrigado, amiga, por compartilhar essas palavras que calam fundo em nosso coração. Que nunca nos falte a crônica do seu olhar sobre a vida, sempre a nos iluminar a alma. Beijos.