Ler Charles Bukowski é tomar um porre, no melhor dos sentidos e um prazer, em muitos outros. É um percurso das relações de gozo e frustrações que implicam no contato do homem consigo mesmo, tanto na tentativa de se entender como tal quanto na expectativa de compreender a mulher.
Quando conheci, no final dos anos 70, o fiz acompanhado também de bebidas e drogas. Como no caso de alguém chegar numa festa em que os amigos já se encontram num adiantado estágio de embriaguez e, por mais que se tente ser agradável, fica sempre faltando algo, ou seja, alcançar o nível etílico suficiente para um mínimo de sintonia nos pretensos diálogos.
Assim é reler Bukowski. Na verdade, para se ler Bukowski é preciso ser um iniciado. Hoje, quase quarenta anos depois, apesar das poucas cervejas e nenhuma droga, o faço muito mais embriagado pelo poder desnorteante e desmoralizador de sua escrita: a literatura que se basta pela capacidade de dizer – sem maneirismos – a partir de si mesma, como uma poética da existência, onde a mundidade (não confundir com mundaneidade) se revela contra a razão.
O livro é uma narração no mais puro e simples estilo da vida amorosa, alcoólica e sentimental de Bukowski. Como uma espécie de crítica da razão puta, uma razão puta com a lógica da hipocrisia e da mediocridade, Bukowski escreve por espasmos, como se possuído pelo que há de mais necessário e cru na angústia.
Apesar de nascido na Alemanha, filho de soldado americano com uma jovem alemã, aos 3 anos de idade foi levado para os EUA, Bukowski é considerado o último escritor norte-americano “maldito”. Um tipo de anti-herói, alcoólatra de misantropo, de certa forma, uma espécie de beat honorário, considerando seu parentesco com o movimento, mesmo sem ter se associado a nenhum dos autores beatniks.
Dentre os personagens citados ou que transitam no romance, figuram seus contemporâneos como Bob Dylan, Willian Burroughs, John Fante, Céline, Hemingway, Gable, Cagney, Bogart, Errol Flynn, Catherine Deneuve, Judy Garland, Randy Newman e outros.
A obra também está repleta de personagens fictícios ou pseudônimos simbolizando alguns dos mitos que impregnaram o espírito de comportamento da época, como é o caso de Tanya, que ele compara com Betty Boop, personagem dos desenhos animados considerada a rainha dos desenhos animados da década de 1930, bem como, a alusão que faz ao modismo místico da classe média, através de Drayer Baba, um cara que nasceu na Índia e morreu em 1971, dizendo que era deus.
Estou falando de Mulheres, romance de 1978, das aventuras de Henry Chinaski que, além de protagonista de outras quatro obras e pequenos textos e poemas, é uma espécie de alterego de Bukowski. É a história de um escritor velho que vive em ambientes undergrounds e que, apesar de ter se tornado famoso, continua com seu estigma de perdedor, vivendo entre uma bebedeira e outra e se divertindo com diversas mulheres.
Este personagem, assim como o próprio Bukowski, é um escritor autobiográfico que cresce pobre, tem casos com diveresas mulheres bem jovens e – apesar de odiar – durante muitos anos trabalhou nos correios. E por falar em mulher, conforme Henry Chinaski, por causa dela “muito cara legal foi parar debaixo da ponte”.
Num dado momento, uma de suas amantes lhe pergunta: “quer dizer que você só vive para escrever depois?”. Ao que ele responde: “não, eu só existo. Daí, mais tarde, eu tento me lembrar de umas coisas e coloco-as no papel”.
Milan Kundera, em ‘A insustentável leveza do ser’, define dois tipos de amantes: o romântico e o épico. O romântico como aquele que nunca se realiza por acreditar na existência da mulher ideal e que, por mais que tenha experiência com diversas mulheres, nunca a encontra e, o épico, como aquele que sabe sentir prazer na particularidade, ou seja, naquilo que cada uma tem de diferente das outras.
Henry Chinaski não é um nem outro, ou é um e outro ao mesmo tempo. Nisso, numa espécie de ciranda entre Eros e Tanatos, ele mesmo se confessa confundido entre a crueldade de Marquês de Sade, sem o seu gênio. Ao mesmo tempo, seduzido pelo mito de Don Juan, reproduz o comportamento de Casanova, de Fellini, apaixonado pelo manequim de uma loja.
Num certo sentido, creio que Chinaski é mais fiel ao conselho daquele anjo de A última tentação de Cristo, de Nikos Kazantizakis, afirmando que na vida do homem só existe uma mulher e que, nesta mulher, o que muda é a cara e o nome. Em Mulheres, esta “mulher” se apresenta com o nome de Lydia, April, Dee Dee, Lilly, Mindy, Hilda, Cassie, Sara, Valerie, Tanya e tantas outras.
Por mais que, para muitos, a obra possa parecer uma história de sexo e bebedeiras, para Bukowski, na verdade, Mulheres, é um poema sobre o amor e a dor.
2 Comments
Meu caro Wilson Coelho – Brau!
Desde as sementes do dadaísmo (“Dada é vida sem chinelos ou paralelos…”) essa é a fascinante face “loucamaldita” da Literatura que Joyce abriu e a geração de Cherouac remasteurizou com a onda do rock e a Liberdade-beat. Móbarato, mago!
Beleza tua crônica! Quem sabe numa tardemansa a turma do PapoCultura possa papobeber sobre o “velho safado”…
um abraço e parabéns!
ruben g nunes
Quem sabe no aniversário inaugural deste Papo? Boa ideia, Ruben! rs