Capítulos de História Intelectual do Rio Grande do Norte
Organização: Bruno Balbino Aires da Costa e Saul Estevam Fernandes
Editora: Editora IFRN
Ano: 2018
348 páginas
Passei a me interessar muito pelo papel de artistas e intelectuais nos processos de construção das nossas mitologias culturais desde que travei contato com a obra do professor Durval Muniz de Albuquerque, durante a escritura, em parceria com meu amigo Henrique Fontes, da dramaturgia do espetáculo A Invenção do Nordeste (do grupo Carmin). No fim das contas são essas mitologias coletivas que muitas vezes acabam por definir nossas identidades pessoais e por isso a História é uma ferramenta hermenêutica tão incontornável na análise de como essas identidades são construídas.
Se você tem interesse em saber mais acerca do papel dos intelectuais norte rio-grandenses na formação da nossa própria mitologia potiguar, uma boa pedida é essa coletânea de artigos publicada pela editora do IFRN em 2018 e organizada pelos professores Bruno Balbino Aires da Costa e Saul Estevam Fernandes.
Os artigos aparecem agrupados em cinco eixos temáticos que envolvem o engajamento político desses intelectuais, a sua influência na formação de uma “paideia potiguar”, a sua relação com a imprensa e com as atividades literárias e seu papel na formação das identidades históricas.
Uma coisa bem legal dessa edição é que ela tem o mérito de analisar algumas das figuras mais importantes do cenário intelectual do estado no século XX, como Câmara Cascudo, Henrique Castriciano, Vingt-Um Rosado e Oswaldo Lamartine de Faria, sem contornar temas polêmicos (tipo o espinhoso tópico da filiação de Cascudo ao movimento integralista brasileiro nos anos de 1930).
É muito interessante compreender, por exemplo, o grau de dependência de alguns dos nomes mais destacados da intelectualidade norte rio-grandense às oligarquias locais, como no caso da vinculação de Henrique Castriciano com os Albuquerque Maranhão e do historiador Raimundo Nonato com os Rosado, em Mossoró.
Aliás, vale destacar nessa seara, o artigo de Fabiano Mendes mostrando como a coleção mossoroense, idealizada e mantida por Vingt-Um Rosado, contribuiu não apenas para a consolidação de uma identidade cultural urbana no município, mas foi também uma ferramenta ideológica essencial para inserir a própria família de seu idealizador como eixo central da história da cidade, construindo uma simbiose entre a genealogia da família Rosado e a história de Mossoró, que acabou por definir a politica da “capital do oeste” por meio século.
Me chamou também atenção o artigo de Evandro Santos e Alex de Assis Batista sobre a construção do imaginário acerca do sertão potiguar (especialmente o Seridó) a partir do olhar de Oswaldo Lamartine de Faria e de Paulo Bezerra.
Aliás, pra mim, a obra de Oswaldo Lamartine merece uma leitura comparada com o texto de Walter Benjamin: “Infância em Berlim por volta de 1900”. A ideia do progresso histórico como catástrofe e do desmantelamento de uma infância perdida onde memórias pessoais e coletivas se misturam aparece tanto no exercício oswaldiano de recolher fragmentos de um “Seridó do nunca mais”, quanto na obra de Benjamin. Essa melancolia da história soa à primeira vista como um elemento que atravessa tanto a obra do judeu alemão quanto a do marrano potiguar.
Também aparece na leitura corajosa que Arthur Luiz de Oliveira Torquato faz no seu artigo sobre Cascudo, esse apego nostálgico a um passado idealizado e a uma infância perdida. O autor não apenas toca na ferida da ligação de Cascudo com o fascismo dos anos de 1930, mas explora também as bases psicológicas do tradicionalismo e do conservadorismo cascudiano, que teria nascido a partir de uma mesma matéria original que alimenta a obra de Oswaldo Lamartine (o saudosismo de uma infância perdida).
Mas se em Oswaldo a memória é a desse Sertão desaparecido, em Cascudo esse resíduo, que se transforma em adesão política ao integralismo e ao monarquismo apimentado com o conservadorismo católico, tem a ver com a perda do status da sua família. As memórias do “principado do Tirol” (a propriedade dos Cascudo em formato de chácara localizado na zona leste de Natal) também são as memórias de um tempo colapsado em que o conforto e a estabilidade financeira do Coronel Cascudo (pai de “Cascudinho”) embalavam aquele que iria se tornar um dos maiores folcloristas brasileiros.
É por isso que dá pra gente entender bem como o advento da República (em um primeiro momento) e a revolução de 1930 (em um segundo momento) se vinculam à perda do prestigio político e econômico da família de Cascudo e contribuíram para a consolidação de uma perspectiva antiliberal e anticomunista que reage à modernidade. A História, compreendida como catástrofe, impacta o imaginário conservador construído sobre a idealização do universo passado de uma infância perdida, destruída pela força fáustica do progresso e da modernidade.
Também me chamou atenção o ótimo artigo da professora Maiara Juliana Gonçalves da Silva sobre o papel da impressa e dos grêmios literários em Natal na segunda metade do século XIX. A autora revê a tese de que a literatura potiguar teria seu momento cosmogônico com a proclamação da República e reconstrói, ainda na segunda metade do século XIX, o cenário de gestação da literatura no estado a partir da sua presença como parte da recém nascida imprensa potiguar.
A gente termina a leitura convencido de que uma abordagem crítica (no sentido de uma avaliação ou de um juízo, como pensavam os alemães) é sempre mais justa com a obra de um intelectual do que o simples aplauso laudatório.
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PS.: E o melhor é que você ainda pode baixar o formato digital do livro gratuitamente no site da editora ( https://memoria.ifrn.edu.br/handle/1044/1669 ).