10 anos sem Oswaldo Lamartine. Sua última entrevista

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No último 27 de março completou uma década da morte de Oswaldo Lamartine. Como homenagem ao nosso maior sertanista, publico a talvez entrevista que mais me marcou. Não pela repercussão, não por ter sido a última concedida por Oswaldo (meses depois ele atiraria em seu peito). Mas pelo impacto que a pessoa Oswaldo Lamartine de Faria causou neste então jovem repórter. Me parecia um homem bom, amigo dos mais simples, mas já descrente da vida que levava longe do seu sertão. A pauta pedia um comentário dele sobre um livro relançado de seu pai, Juvenal Lamartine. Mas logo percebi que seria muito pouco, que estava diante de alguém maior. Saí daquele Flat Potengi meio extasiado. Até esqueci a raiva pelo trabalho no horário do jogo do Brasil em plena Copa. Mas Oswaldo não esqueceu sua raiva (rs). Cerca de três meses depois, sua fonoaudióloga, com quem eu mantinha contato, me transmitiu o contentamento de Oswaldo com a entrevista e o pedido para novo encontro. Nunca fui, premido pelo tempo; esse tempo apressado, longe da vida arrastada do sertão de Lamartine. Confira a entrevista, publicada no O Poti em alguma data de agosto de 2006.

O DOTÔ DO SERTÃO

Essa página bem poderia estar empoeirada ou melada de um barro molhado que moldou a personalidade de um sertanejo nato. Numa hipótese mais utópica, essa página poderia voar solta e perdida entre os chãos arenosos do Seridó potiguar; lá para as bandas de Serra Negra do Norte, onde nasceu um doutor com diploma de sertão, chamado Oswaldo Lamartine. Próximo de seus 87 anos, Oswaldo Lamartine é maior que qualquer livro: é o retrato vivo de tradições perdidas; de costumes esvaídos, alterados. A recomendação inicial dada ao repórter era visitar o “dotô” para que comentasse a 3ª edição do livro de sue pai, Juvenal Lamartine de Faria: Velhos Costumes do Meu Sertão, edição especial da Editora Sebo Vermelho. Mas a visita ficaria diminuída, por mais grandiosa que seja a obra. Dessa forma, o repórter tentou extrair do entrevistado algo mais que teoria e conhecimentos; algo ainda permanente de sua memória, sentimentos presentes. O prefácio do livro, escrito pelo jornalista Woden Madruga ou a apresentação do próprio Oswaldo falam por si só.

A visita é feita de surpresa, numa quarta-feira à tarde, no flat onde mora só há oito meses, em Petrópolis. Iniciava-se o segundo tempo do jogo de futebol da seleção brasileira contra a Noruega. A enfermeira que o acompanha diariamente, durante as manhãs e tardes aponta o quarto onde está o escritor. Nem bem aponta, Oswaldo grita um “pode entrar” contido. É que há três anos foi operado e hoje sofre dificuldades de deglutição e de fala. Os pigarros são constantes. O escritor vestia roupas leves. Após um aperto de mão firme que contraria o aparente corpo magro e debilitado em função da doença, ele se desculpa por receber o repórter daquela maneira: “um lixo hospitalar”. Parece contrariado pela impossibilidade de proporcionar a recepção característica dos sertanejos.

De início pareceu concentrado no jogo. Aos poucos mergulhou em recordações novas e momentos do tempo-hoje. A edição mais nova do livro de seu pai estava num criado-mudo. Na cama de casal, os óculos por cima de uma revista Veja. Antes de começar as perguntas, o repórter pergunta se gostou da entrevista feita com ele pelo jornalista Tácito Costa, no final de 2005, quando ainda morava em Candelária, na casa do filho. A resposta já denotava uma humildade que se veria ao longo desta entrevista, que durou 30 minutos: “Os defeitos são meus, não são do repórter, não”. Em papo informal de despedida, confessou: “Rapaz, só estou esperando a morte, que não chega; a caetana”. Mas a lucidez do escritor impressiona. A memória continua tinindo.

A entrevista foi pouco editada. A intenção é retratar de forma mais real as palavras do escritor, os intervalos, as pausas, as reações, como a de contrariedade do horário. Ao final da entrevista, quando se aproximava o fim do jogo, o repórter pede um autógrafo. Ele perguntou o nome. Olha para a televisão e pergunta quem jogava contra o Brasil. E continuou o autógrafo, mesmo sem os óculos, postados ao lado da cama:

“Ao Sérgio
Que veio me ver no decorrer do jogo Brasil x Noruega VIII/06”

ENTREVISTA

Sergio Vilar – O livro é uma reunião de artigos escritos pelo seu pai, em 1954…

Oswaldo Lamartine – Justo. É uma terceira edição que… Eu num entendo essa linguagem eletrônica… Escaneada da segunda.

O senhor gostou da roupagem dessa terceira edição?

Eu implico. Eu sou rabugento (pigarreia)… Isso foi um médico que me operou. Fiquei com dificuldade de deglutição. Mas voltando ao livro. Em Natal há um grande defeito… No Rio Grande do Norte. Não é só em Natal que a gente progride como rabo de cavalo: pra baixo. Antigamente se fazia livro costurado. Agora não se faz mais. É colado. Se essa cola presta ou não presta, não sei. Não sei se esse clima nosso se coaduna com a cola. Eu sei que daqui a uns anos pego o livro e, quando abro, parece um baralho novo: sai página pra todo lado.

Quanto à capa e contra-capa, o senhor gostou das ilustrações?

Isso aqui são bicos-de-pena de Percy Lau. O maior bico-de-pena da América do Sul. Ele trabalhava para o Conselho Nacional de Geografia. Fez uma série de desenhos para ilustrar obras do Ministério da Cultura, chamado Documentário da Vida Rural Brasileira (passa a olhar mais atento ao jogo de futebol).

O senhor gosta de acompanhar jogos de futebol?

Gosto.

Doutor Oswaldo…

Não me chame de doutor; num me bote apelido, não.

Desculpe. Logo no primeiro artigo do livro, seu pai escreve que as transformações sociais e econômicas que se vão processando no Brasil estão modificando os costumes e alterando hábitos sertanejos que pareciam sólidos. Essa observação foi descrita em 1954. Ainda existe sertão hoje?

O mundo todo está em permanente modificação, não é? E agora, então, depois da eletrônica, cabou-se tudo. O sertão hoje não existe mais. Teve um sertanejo que me veio aqui nestes dias e disse que foi numa feira em São João do Sabugi (no Seridó, a 250km de Natal) e não tinha nenhum animal. Nem burro, nem cavalo, nem cela na feira. Só tinha bicicleta e moto. Antigamente o sertanejo ia pra feira montado em seus animais.

Esse livro já é então um retrato de um cenário que inexiste.

(pigarreia). Num liga não. Eu sou nojento mesmo. Isso foi uma série de artigos que meu pai fez, evocativos do sertão do tempo dele.

E o que há deste sertão descrito no livro, hoje?

(o celular dele toca) – O que “djabo” é isso?, pergunta à enfermeira que chega para entregar-lhe o aparelho. (A enfermeira lembra que é seu celular. Ele atende. Sua primeira frase é: “Tou meio borocochô”. Reclama depois da inconveniência da ligação no meio do jogo). Você me perguntava se ainda existe alguma coisa sobre o sertão que ele pintou. Naturalmente que existe, mas descaracterizado (longa pausa). Agora mesmo estão fazendo uma cavalgada em Serra Negra do Norte. Me informaram que os animais vão todos com ferradura. Você é sertanejo? – Não, da capital, responde o repórter. O sertanejo legítimo, nessa época, se você mostrasse uma ferradura, ele não sabia o que era (sua fonoaudióloga chega. Ele brinca que não quer negócio com ela. São muito amigos. Ela afirma que veio só dar uma satisfação. Ele pergunta se ela pode enviar uma carta para ele no correio. Ela afirma que sim e avisa que no dia seguinte trará os jornais do dia)… Acontece que nossos animais, que foram introduzidos aqui na época do império, vieram da Península Ibérica, que recebeu sangue mourisco, por causa da permanência do árabe. E esses animais chegaram aqui na época do ciclo do açúcar. Então foram tangidos para o interior. E os que não tiveram condições de sobreviver, morreram. Portanto, os cascos dos equídeos eram de uma dureza excepcional, porque eles pisavam naquelas pedras do Seridó o tempo todo. Isso que na natureza levou séculos fazendo, essa rapaziada nova, desinformada e com dinheiro, está estragando. Introduziram um tal de quarto de milha, que aquilo é um cavalo excepcional, mas para 400 metros. O nome está dizendo. O americano selecionou aquilo para 400 metros; um animal de enorme destreza para isso. Só que um bicho desse lá (no Seridó), como nossos bichinho, eram solto, cabou-se tudo.

Não há como frear o progresso. Isso é fato. Mas o senhor acha que as tradições e costumes sertanejos estão em processo acelerado de perda de identidade?

Ninguém pode segurar a rédea do progresso, mas é preservar… (pigarreia, e repete: Desculpe, eu sei que sou nojento, mas é culpa do médico). Preservar nossas tradições. O gaúcho continua chupando chimarrão e fazendo aquelas festas tradicionais dele. Aqui se vai numa vaquejada hoje, o cavalo é quarto de milha, o vaqueiro usa chapéu de cowboy, bota de cowboy, cinturão de cowboy e toma uísque em vez de cachaça. E derruba (o boi) num colchão de terra que é pra não se machucar. Chamam isso de vaquejada. De vaquejada não tem nem o nome. Devia ser proibido. A vaquejada é uma sobrevivência, porque antigamente não existia o arame farpado. Minha propriedade e a sua (hipótese) eram uma divisa. Meu gado se misturava com o seu. Durante uma época do ano, os vaqueiros juntavam o gado para identificar e ferrar. Essa aqui é de tanto, esse outro é de tanto. No fim daquela apartação, os proprietários proporcionavam ao vaqueiro, a vaquejada. Você vai ao sertão hoje e vê nome inglês em tudo quanto é canto. Por isso que Ariano Suassuna está pipocando. Com razão.

Essa interação do progresso com a preservação das tradições formaria qual cenário no sertão? Ou melhor: qual o cenário ideal para o sertão hoje?

Sertão não existe mais. Não tem um fazendeiro morando em casa de fazenda. Só aparece no interior como turista da seca. Cabou-se.

O senhor deve ter visto seu pai escrevendo muito destes artigos selecionados no livro. Como era a rotina de escritor de Juvenal Lamartine? O senhor se recorda de sua expressão ao falar dos costumes sertanejos?

Ele escrevia mal porque cegou nos últimos anos de vida. E não tinha o hábito de ditar. Ditar é um hábito. Então, saiu muito truncado esses artigos, porque ele não tinha como fazer consulta bibliográfica.

Imagino que ele guardasse o sertão dentro de si.

Ele cego ainda ia pra propriedade e de madrugada montava a cavalo. Seguindo um cavaleiro-guia, percorria a propriedade toda.

O senhor conhece o sertão como poucos. Qual a influência do seu pai no seu sertão, nos seus escritos ou mesmo na sua vida?

Fui impregnado disso porque o acompanhei em certo período da cegueira, quando os amigos que vinham visitá-lo eram gente da geração dele, em conversas de velho, evocativa. Então, escutava muito o sertão sendo revisitado… (gol do Brasil. Ele pergunta se foi do Brasil. E mira o olhar na espera do replay. Depois, brinca, num certo tom de verdade: “Isso não é hora de fazer entrevista não, viu?”, e esboça discreto sorriso).

Das lembranças que o senhor tem de seu pai, quais estão mais presentes neste livro?

As lembranças são a de um amigo. Se foi e me deixou uma orfandade.

O senhor deve ter lido as obras de Euclides da Cunha (O Sertão), Graciliano Ramos (Grande Sertão: Veredas) e Gilberto Freyre (Casa-Grande & Senzala). Qual a avaliação que o senhor faz destes livros que viraram clássicos?

Li esses troço todo. “Casa-Grande” é o ciclo do açúcar, diferente de “Grande Sertão” (pigarreia e já mostra alguma respiração ofegante). Ambos são clássicos dentro do que se propõe. Um no sertão, o outro no litoral.

Quando se falou de sertão, como em Grande Sertão e O Sertão, o senhor achou que foi descrito com precisão, obedecendo as peculiaridades sertanejas?

Sim, poeticamente. Muito bem trabalhada a palavra. Não foram escritos de oitiva não. Quem sou eu pra dizer não, rapaz?

Qual a comparação que o senhor faz destes livros com a sua obra?

Com a minha? Não se pode comparar essas coisas. Arranje outra pergunta.

O senhor foi elogiado desde muito por Gilberto Freyre e José Lins do Rego.

Generosidade desse povo. (Num artigo para a revista O Cruzeiro, edição de 9 de outubro de 1948, Gilberto Freyre cita Oswaldo como uma revelação de estilo na etnografia brasileira. Em outra passagem diz que, ao lado de Câmara Cascudo, Oswaldo se tornou mestre em assuntos nordestinos. José Lins, no mesmo ano, registra: “… muito teria que aprender com o jovem ensaísta riograndense do norte”).

Aqui no Estado, pelo menos ninguém tem um volume de obras sobre o sertão como o senhor. Cascudo escreveu sobre aspectos mais subjetivos.

Apenas escrevi umas besteiras que os outros não se lembraram de escrever. Foi só isso. (a expressão se fecha um pouco).

O senhor morou 38 anos no Rio de Janeiro. Vive a algum tempo na capital. Ainda sente falta do sertão?

Depois do Rio (de Janeiro) voltei pro meu sertão. Hoje estou um aleijado em cima de uma cama. Sinto falta, sim… sinto.

O sertão ainda permanece com o senhor?

Entenda uma coisa: aquilo que ocorre na adolescência, como o barro molhado que lhe molda, esse não desaparece nunca. Fica impregnado. A adolescência é diferente de outras fases da vida. Ela molda a personalidade. (mostra reais sinais de cansaço).

Para fechar. Sei que a pergunta é complexa. Mas o que é o sertão para o senhor?

Ô meu filho… (longa pausa). É um mundo que se foi.


Foto de capa: Candinha Bezerra

Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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