Portugal, 16 de Julho de 2006
Até os 25 anos nunca pensei que fosse aprender a dirigir. Isso mais por uma crença em uma incapacidade inata em domar uma máquina do que por questões ideológicas, diga-se de passagem. O fato é que as circunstâncias e a vida de pai de família numa cidade como Natal (com um sistema de transporte público cada vez pior) me levaram ao Detran e ao inevitável exame para tirar a carteira de habilitação, muito a contragosto.
Mesmo depois que aprendi a dirigir pouco me aclimatei com as idiossincrasias da mecânica de automóveis e nunca desenvolvi muito entusiasmo pela direção. Especialmente quando viajo. O melhor de abandonar Natal é andar de Metrô ou de Trem.
O problema é que, mesmo em Portugal, existem alguns lugares, especialmente as aldeias pequenas afastadas dos grandes centros, em que o uso do carro é incontornável. No fim das contas, como alguém tinha mesmo que pegar no volante e levar a família ao nosso próximo destino, acabei sendo o escolhido para guiar de Almoçageme até Afife, no litoral do Minho, já bem próximo da fronteira com a Galícia espanhola. Cortaríamos Portugal pela autoestrada A1, cruzaríamos o Douro e chegaríamos à parte Norte do país.
Confesso que no começo me senti um bocado ansioso. Não conhecia o caminho. Tinha um mapa, meu cunhado como copiloto lendo as placas pela estrada, um carro de quatro portas, muita bagagem e boa vontade para chegar em algum lugar.
Acostumado com as estradas brasileiras, me preparei psicologicamente para viver momentos de emoção e perigo. Lembrei de imediato uma viagem que fiz para São Paulo em 1998. Na época ainda era aluno da graduação de Filosofia na UFRN e fui apresentar um trabalho em um congresso na USP. Peguei um ônibus com o camarada Jaadiel Rocha, que na época estava se dedicando ao estudo sistemático da correspondência de Leibniz com Newton. Saímos na parte da tarde. Ônibus da empresa São Geraldo, com ar condicionado e algo que diziam (à época) ser um frigobar (tenho sérias dúvidas sobre a categorização de frigobares em ônibus interestaduais, mas essa é uma questão mais técnica do que filosófica).
Tivemos azar de pegar uma cadeira perto do banheiro e de ter entre os passageiros um senhor com um grave distúrbio gastrointestinal. Sempre que o pobre homem se levantava do seu lugar, perto do motorista, metade do ônibus abria as janelas ou se deslocava para perto da porta. Era uma espécie de calvário. Um constrangimento terrível ver aquele pobre homem, fraco das tripas, se arrastar até o banheiro para, após alguns minutos de tormento sanitário, empestear o ônibus com um cheiro que me lembrava as soluções de sulfato de amônia que a gente cuidadosamente pipetava no laboratório de análises químicas da ETFRN, no tempo do meu ensino médio.
Viajamos quase quarenta e oito horas, parando de cidade em cidade pelos sertões da Bahia, pelo interior de Minas Gerais, até chegar no grande Molloch paulistano; o gigantesco agregado de ferro, aço e concreto que se estende como uma monstruosa mancha urbana pelo Sudeste do país. Capital industrial do Brasil; motor econômico da América do Sul, como o orgulho bandeirante costuma repetir a torto e a direito.
Na primeira noite de viagem paramos em algum lugar entre Alagoas e o resto do mundo. Um novo motorista entrou no ônibus para fazer o revezamento com o que nos trazia de Natal, porque de tantos em tantos quilômetros, tinha de haver uma troca de motoristas, por questões óbvias de segurança. O sujeito que subiu no veículo naquele fim de mundo era jovem e foi logo se apresentando para os passageiros: “meu nome é fulano de tal, sou casado, pai de uma filha; meu Rg é 0000000000, meu CPF 000000000”. Então retirou um retrato de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro do Bolso, beijou a imagem e disse: “Com muita fé em Deus e com a ajuda de Nossa Senhora eu vou levar vocês até Feira de Santana”.
Um silêncio ansioso se seguiu à apresentação do motorista. Então eu ouvi duas senhoras conversando no banco de trás: “Porque ele disse isso?” – perguntou uma. “Porque na semana passada mataram um motorista nesse trecho da estrada. Assaltaram o ônibus. Colocaram todo mundo nu na beira da estrada e levaram a bagagem”.
Essas são as estradas brasileiras.
Você não tem como imaginar, amigo velho, a quantidade de adrenalina e de orações que são lançadas pela janela em uma viagem de ônibus de Natal para São Paulo. Morrer numa estrada brasileira é uma possibilidade tão real que viajar de um lugar para outro, por mais perto que seja, sempre é motivo de comoção.
Mas em Portugal as coisas não são assim.
É absolutamente tedioso dirigir numa autoestrada europeia. O asfalto impecável, as pistas triplas, os acostamentos sinalizados, placas e mais placas para todo lado. Viadutos. Túneis. Painéis eletrônicos avisando de qualquer acidente num raio de 15 quilômetros. Tudo que a moderna engenharia de tráfego pode proporcionar para fazer com que a viagem ocorra no mais absoluto e completo tédio. Aliás, a impressão que a gente tem é que a estrada leva o carro. É só numa estrada europeia desse tipo que a gente consegue compreender a genialidade de um álbum como o Autobahn do Kraftwerk.
O deslizar circular e geométrico daquelas notas repetitivas que se projetam como ondas eletrônicas em um fluxo contínuo, sintetizam de modo magistral o que é dirigir num lugar como aquele. Nada que tenha a ver com a selvageria old style das esburacadas BRs brasileiras.
Talvez o maior problema das estradas europeias seja mesmo o sono. É inevitável que um estranho e hipnótico sono tome conta do motorista. Por mais descansado que ele esteja, por mais café que tenha tomado, por maior que seja a lata de Redbull que ele tenha botado pra dentro; é sempre uma inevitabilidade: uma hora o sono vai chegar.
As autoestradas europeias parecem querer jogar na cara da gente, a toda hora, aquela quantidade monumental de ordem e razão que se acumulou naquele continente a partir da revolução científica do Século XVI e XVII. É como se toda a grande arquitetura mental do iluminismo virasse asfalto na autoestrada, em contraposição às obscuras estradinhas medievais das vilas rurais (como a que leva ao Cabo da Roca, por exemplo).
Repentinamente, quase sem querer, dirigindo pela autoestrada, cheguei mesmo a visualizar todo um imenso cruzamento de transportes, de linhas de trem, metrô; toda uma intrincada malha de pistas de asfalto como fios neuronais interligando as cidades, os países, os estados, em uma rede completamente integrada. Nada de piçarro pra você derrapar, nenhum buraco cheio de lama pra você estourar o pneu, sem sinal de areia na pista pra você deslizar e bater no acostamento.
O máximo de emoção que pude constatar na viagem de aproximadamente quatro horas de Almoçageme até Afife foi uma placa, já depois que cruzamos o rio de Lima, que alertava para o perigo de neve na estrada. O que não era absolutamente o caso, graças a ajuda providencial da frente de calor que havia chegado da África uns dois dias depois de nosso desembarque.
Dirigir em Portugal, numa dessas A1, A2, A3 é assim, quase uma experiência mental. Quase como ler a Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Você não entende pra onde está indo, só vai, vai, vai. Também há aquela previsibilidade sistemática dos povos do norte. Depois de dez quilômetros numa dessas autoestradas você pode prever toda a pista, saber o que vai acontecer em dez, quinze, vinte minutos. É como se cada quilometro se repetisse numa constância obsessiva. Nada acontece numa auto estrada europeia até que algum motorista “cangueiro” resolva se revoltar com dois mil anos de metafísica e mude de faixa sem ligar a sinaleira.
Se não fossem eles, os humanos, como sempre essas máquinas estranhas e imprevisíveis que algum deus mal intencionado ou muito bem humorado resolveu colocar na terra, as Autoestradas seriam perfeitas. E a perfeição, como todo mundo sabe, é densa demais para o mundo suportar seu peso.