Terror é arte e você deveria assistir

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Por Paula Pardillos

Durante 2009 eu trabalhava em uma videolocadora, que foi um dos empregos mais interessantes que eu tive. O expediente todo estava falando sobre filmes, conversando com pessoas de distintos gostos e contextos. No primeiro mês (por sorte, apenas o primeiro mês) estive alocada em um bairro rico/fresco, e os clientes davam risada se eu indicava filmes brasileiros, achando, genuinamente, que era uma piada.

No restante do meu tempo estive em um bairro de classe média mais alternativo, e convivi com alguns clientes gentis e interessados em cinema, filmes “cult’, de arte, do Oscar… Mas o cliente mais regular era o que buscava um divertimento para o fim de semana. A maioria esmagadora, então, me abordava e pedia alguma variação de: “você pode me indicar uma comédia ou um terror?”; “a gente queria ver uma comédia! Ah, não, pode ser um terror… ah, um dos dois!”.

A comédia e o terror são amplamente conhecidos e procurados como filmes que você assiste “para se divertir”; entretanto, quem não gosta do gênero (terror), frequentemente não entende, sinceramente, o porquê de se assistir; surgindo com questões como: por que se colocar nesse lugar de sofrimento? Se a vida já é tão difícil e cheia de terrores reais, por que buscar mais?

“A diferença entre um terror e uma comédia é a música”

Jordan Peele¹

Bem, essa dúvida talvez seja fácil de responder. Tanto o terror como a comédia trabalham com a criação de tensão e subsequente liberação dessa tensão. São catárticos e parecem ter uma conexão direta com nossas emoções mais primitivas, diferentemente dos gêneros que dependem de uma entrega maior do espectador, de trabalho mental, de dedicação àquela experiência.

Entretanto, às vezes parece importante defender que entretenimento não é oposto à arte. Numa mesa de conversa² entre grandes roteiristas, Aronofsky, Peele e outros defendem que entretenimento é aquilo que engaja o espectador, independente de ele gostar ou não gostar da experiência ou do filme, é importante não “colocar o espectador para dormir”; isso não quer dizer, portanto, escrever algo que agrada, simplesmente, como muitas vezes é entendido o entretenimento.

De todo modo, frequentemente o gênero do terror (e da comédia, também) é subestimado, é visto como algo menor. Em seu livro mais recente, John Truby expõe que um motivo importante para esse desprezo com a narrativa do terror é o fato de o(s) personagen(s) não evoluírem/crescerem. O arco dramático do protagonista, frequentemente, é tão pessimista quanto a própria visão de mundo sobre a qual o terror se estrutura: o fatalismo rege todas as curvas narrativas, a morte é inevitável, o ser humano é falho (o problema moral que move o personagem e a narrativa é insuperável)³. No senso comum uma história que percorra a Jornada do Herói, e até mesmo a narrativa centrada no desenvolvimento de personagens (character driven) é vista como mais profunda, talvez mais artística.

O terror não é visto como algo para ser “levado a sério”. Pelo fato de ter monstros, talvez?

frame de The Exorcist, 1973

No mesmo livro, Truby relata que, a partir de Edgar Allan Poe, que inventou o terror psicológico, tudo que veio depois se ancora nessa premissa: os demônios são internos. Qualquer monstro, fobia, demônio que assombra o protagonista é o espelho de seu demônio interno.

Para o autor o terror é, também, que lida com o conflito mais importante que governa a experiência humana: vida vs. morte. O terror se constrói inteiramente na inquietação humana mais profunda: a luta contra a morte, o medo do fim, o desespero existencial da mortalidade.

É difícil entender porque existe um preconceito tão grande contra o gênero, nesse sentido. Peele¹ acredita que, no terror, você está convidando o espectador para passar 1/2h em um lugar pior do que ele já vive, o que parece contra intuitivo para um momento que deveria/poderia ser de escapismo. O que me soa muito estranho, já que um drama, uma tragédia, um filme de guerra são, certamente, muito mais deprimentes; para a maioria dos espectadores, são realidades muito piores do que a que eles vivem.

Por que, então, essa resistência?

Atualmente, com a difusão do conceito de “terror elevado” ou “pós-terror”, representado por nomes como Robert Eggers, Ari Aster, Julia Ducournau, Jordan Peele, essa percepção parece ter aumentado: apenas alguns tipos de terror são ‘dignos’ — de serem levados a sério, de estarem nos grandes festivais, de receberam premiações. Mas as temáticas, a arte envolvida na criação, não são elementos novos. Grandes diretores de cinema têm pelo menos um terror na filmografia: O Iluminado de Kubrick, Jurassic Park de Spielberg, O Segredo do Abismo de James Cameron, A Hora do Lobo de Bergman; filmes nos quais eles aplicaram a genialidade pela qual são conhecidos.

No Brasil, provavelmente de maneira mais evidente, é um gênero muito escanteado. O Animal Cordial, de Gabriela Amaral Almeida (que certamente ganhou muito mais espaço do que o que seria esperado pelo fato de tratar de diferenças de classes sociais), que foi bastante elogiado, merecia ter uma atenção muito maior da crítica e um lugar no cinema nacional mais evidente; pela direção primorosa, que demonstra o domínio e exploração da linguagem (que é justamente o aspecto artístico do ofício da direção cinematográfica), atuações surpreendentes, que certamente movem o público, e uma escrita de qualidade.

No mesmo sentido, diversos outros filmes recentes com qualidade e inovação diferenciadas, que mereciam mais divulgação pela crítica especializada ou canais culturais no geral, para terem mais atenção e valorização do público, são menos conhecidos, como: Noites Brutais (2022), Men (2022), Fale Comigo (2022), Propriedade (2023)…

Enquanto isso, filmes de drama com pouco ou nenhum trabalho inovador na direção, narrativas repetitivas baseadas em superação inspiradora, ou temáticas urgentes trabalhadas de forma superficial ou protocolar, são amplamente divulgados e valorizados.

Em comparação com grande parte do que é consumido e elogiado, muito do conteúdo de terror tem potencial maior de colocar o espectador em contato com questões verdadeiramente importantes para o espírito humano; muitos filmes e livros de gênero têm maior potencial para provocar experiências estéticas relevantes. Entretanto, o gênero dificilmente é visto como arte. Mas não é isso que a arte deveria fazer?

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¹Entrevista em The Daily Show with Trevor Noah, 2023

²The Hollywood Reporter Roundtable with writers, 2016

³The Anatomy Of Genres – How Story Forms Explain How The World Works, John Truby,  2022

Paula Pardillos

Paula Pardillos

Escritora e crítica, membra da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte. É também roteirista e diretora de cinema, com enfoque no gênero terror.

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