Meßkirche – Alemanha, 27 de Janeiro de 2017.
Parece realmente que, se você quer entender a Alemanha, precisa conhecer seus rios. Ontem fomos até a nascente do Rio Danúbio em Donaueschingen, aqui na Floresta Negra. O rio mais famoso da Europa (desculpem os ingleses e franceses). Nasce em um pequeno “olho d´água” que fica ao lado de um palacete do século XVI, construído por algum desses “príncipes eleitores” suavos que mandavam no sul da Alemanha. A nascente do rio, imortalizado por Strauss em sua valsa (O Danúbio Azul), estava cercada e transformada em local de visitação turística.
Achei muito curioso que aquele rio tão famoso, que é o segundo mais extenso da Europa e que corta toda a Bavária, atravessando a Áustria e deslizando por diversos países do Leste até desaguar no mar negro, nascesse naquele pequeno “olho d´água” em forma de poço, bem no meio da Floresta Negra. Os gregos antigos chamavam esse rio de Ister e ele, com seu curso em direção ao oriente, servia de via fluvial que ligava as rotas comerciais do sul da Alemanha e das regiões balcânicas às estepes da Rússia e da Ásia central.
Isso é muito importante de se ter em mente. Na antiguidade, assim como o mar com suas correntes, o rio também era uma estrada. Pensei, diante daquele poço, ao lado do palácio do tal príncipe que não sei o nome, que essa parece ser, para mim, uma viagem de rios. O Tejo, o Douro, o Neckar, o Danúbio… começou a me parecer fundamental conhecer os rios de uma terra estrangeira para se saber dos cenários onde os humanos constroem suas arquiteturas, sua geometria urbana, tecem os fios que os unem e as fronteiras que os separam.
Assim como nós, os humanos, os rios também passarão, mas suas marcas no tempo, como estradas naturais, fontes de energia ou reminiscências semiológicas, apontam para uma era mais longa do que o tempo da vida humana. Quem estudou geologia sabe que as marcas físicas no curso dos velhos rios que morreram e que feriram a terra em antigos milênios passados, permanecem gravadas na areia do tempo. Mesmo depois que a água deixar de correr por seu fluxo, seus sinais estarão ali, para nos lembrar da sua presença.
Talvez, por essa consciência da temporalidade, pela lembrança das marcas que ficam quando a água da vida passa, haja uma semelhança inusitada entre conhecer um rio e visitar um cemitério.
Hoje viajamos para o Leste, nos limites entre os estados de Baden-Wünttemberg e da Bavária. Fomos conhecer Meßkirche, a cidade onde Martin Heidegger nasceu e onde está enterrado.
Como era de se esperar há um “Instituo Heidegger” em Meßkirche. É uma espécie de museu que conserva a memória do pensador mais importante que uma cidadezinha nos confins da Alemanha poderia ter gerado.
Penso sempre em Heidegger como um “Ariano Suassuna” da filosofia alemã. Quando ele apareceu para fama filosófica nos anos de 1920, trajava-se, em suas falas públicas, com roupas típicas dos camponeses do sul da Alemanha e não escondia o forte sotaque dos sertões gelados de onde vinha. Essa conexão com a terra e com a “Alemanha profunda” foi sempre uma das marcas distintivas do pensamento de Heidegger e do personagem que ele criou para si.
Na sua fundação, construída em um prédio público da prefeitura que congrega outros museus da cidade (como o de arte sacra), é possível ver fotos antigas, ouvir a voz de Heidegger em gravações raras, observar os manuscritos de seus textos, além de contemplar as primeiras edições de suas obras e a coleção completa de seus livros publicados por Vitorio Klostermann em Frankfurt, no ano de 1975. Também está exposta a edição da revista Der Spiegel em que Heidegger deu sua famosa entrevista na qual fez a odiosa comparação entre campos de concentração nazistas e fazendas mecanizadas.
Nos papeis dispostos em uma das salas do museu, a história da adesão de Heidegger ao nazismo é tratada segundo a versão oficial da ortodoxia heideggeriana: “o filósofo aderiu ao partido de Hitler para assumir a reitoria e evitar um mal maior para a vida acadêmica”. Essa é uma visão que justifica o vexame da vinculação de Heidegger ao movimento de Hitler como um misto de oportunismo e ingenuidade, típica de filósofos que se metem com política institucional achando que estão na República de Platão.
Por muito tempo se imaginou esse Heidegger. A ideia, até meio respaldada por Hannah Arendt e Karl Jaspers, era de que o autor de Ser e Tempo seria um carreirista ambicioso que viu uma oportunidade de subir sua patente acadêmica quando o nazismo conquistou o poder.
Hoje essa interpretação oficiosa não convence mais muita gente, principalmente depois que começaram a publicar seus cadernos com anotações privadas, que mostram que ele foi um “nazista safado” por convicção e não por conveniência. Penso que esse é o grande escândalo da filosofia: não o fato de Heidegger ter sido um nazista safado, mas sim o embaraço de termos um nazista safado produzindo um pensamento tão instigante e profundo acerca das questões que abordou.
Mas, obviamente, essa não é uma questão que se apresente em um museu oferecido pela cidade de Meßkirche para o seu personagem mais ilustre. Em uma das cartas de Heidegger, expostas nas mesas do instituto, o filósofo datilografa uma mensagem de agradecimento ao prefeito da cidade por alguma homenagem ou convite que ele tenha recebido. Sua relação com a terra natal é exposta na carta com um certo orgulho protocolar e provinciano de ser reconhecido em sua própria aldeia.
Talvez seja essa uma das grandes ambições de todo ser humano que se presta a criar uma obra, não é mesmo? De que adianta conquistar o mundo se sua aldeia não te reconhece?
Talvez por isso Heidegger, que sempre se viu como uma criatura da Floresta Negra, tenha feito tanta questão de ser enterrado no pequeno cemitério de Meßkirche, bem ao lado da igreja católica em que ele foi coroinha quando era criança e que seu irmão trabalhou como sacristão por toda a vida.
Lá, em uma área familiar, estão enterrados seus pais, seu irmão, sua cunhada e sua esposa Elfride, que morreu em 1992 com quase cem anos. O clima não poderia ser mais propício para minha visita ao túmulo de Heidegger. Apesar do tempo claro, o cemitério ainda guarda restos da nevasca das semanas anteriores, pintando de branco, aqui e acolá, o verde do gramado e o marrom dos galhos das grandes árvores que se espalham ao redor do cemitério.
Na lápide de Heidegger, posta bem ao centro, ao lado da do seu irmão e do seus pais, seu nome está escrito em negro, logo acima do nome da sua esposa, posto em dourado. Sobre o nome do casal, ao invés da cruz de Cristo, como ocorre no túmulo do seus pais, do seu irmão e da sua cunhada, aparece uma estrela.
Fiquei curioso para entender o significado desse signo. Meditei um pouco sobre o assunto enquanto contemplava a cova do sujeito que me dediquei a estudar no doutorado e que ainda me deixava intrigado a ponto de me fazer atravessar o Atlântico e viajar para dentro da Floresta Negra para tentar compreende-lo.
Seria um sinal de paganismo? Uma referência ao pensamento que permanece no céu das ideias como mais uma estrela da aventura filosófica? Algum desejo particular do morto? Uma sutileza da Santa Madre Igreja que escapa a minha tateante leitura marrana do catecismo da católico? Um enigma para ser decifrado por estudantes de filosofia do século XXI ou simplesmente algum detalhe cultural do sul da Alemanha que passa despercebido para visitantes estrangeiros como eu?
No acervo exposto no pequeno museu erguido em seu nome, preservou-se a roupa do jovem coroinha Martin Heidegger, usada nos ofícios religiosos da Igreja católica de Meßkirche.
Quando sua mãe estava no leito de morte, um Heidegger comovido, já famoso por seu trabalho filosófico, lhe escreveu uma mensagem dizendo: “Eu nunca me afastei verdadeiramente da Igreja”.
A estrela em sua tumba e o apelo aos velhos deuses que eclodem em seu pensamento, fazendo eco à memória de obscuros tempos pré-cristãos, de onde brotaria a origem do espírito daquela terra fria e sombria que se espalha no pé dos Alpes, depunha contra essa assertiva, feita talvez para consolar uma mãe que, mesmo morrendo, ainda se preocupava com o destino da alma do filho.
Deixei o túmulo de Heidegger e a pequena Meßkirche para trás ainda perturbado com os enigmas que cercam a vida dos filósofos. Para além das abstrações do pensamento há uma vida concreta, com suas misérias morais, suas contradições e seus desafios.
Ao mergulharmos muito fundo no pensamento de alguém acabamos por aterrissar no território de sua vida. Às vezes, quando a gente passa muito tempo estudando filosofia, se esquece desse detalhe inquietante. Há uma vida por trás do pensamento. É preciso pensar sobre essa vida, mesmo que, para isso, a gente precise mergulhar no rio caudaloso do tempo que sempre, inexoravelmente, nos leva à imobilidade silenciosa de um túmulo.