Santiago – Chile, 13 de Março de 2015
O dia amanheceu frio, apesar de ainda ser verão no sul global.
Isso acontece porque o sol, que nasce aqui atrás da cordilheira, parece que demora um pouco mais para afastar as sombras da madrugada que cai sobre Santiago.
No aparthotel em que estamos, quase na esquina da avenida Pedro Valdívea com a rua Apoquino, o café da manhã é servido no quarto. A curiosidade é que trazem a comida na tarde anterior, obrigando a gente a guardar as coisas na geladeira e aquecer pela manhã no micro-ondas. Fiquei na dúvida se aquilo era um hábito gastronômico dos chilenos ou apenas um recurso operacional do Hotel RQ, que não nos pareceu ser muito bem conceituado nas listas de estrelas com padrão internacional (a despeito de dar para o gasto, se você, quando viaja, se interessa mais pela cidade em que está, do que pelo Hotel em que se hospeda).
Sem perder tempo com especulações sobre a qualidade de nossa hospedagem, comemos depressa e descemos para estação a fim de pegar o metrô até a Plaza Baquedano, no pé do Cerro San Cristobal, no bairro de Bela Vista.
O lugar me pareceu uma curiosa mistura de Santa Teresa no Rio de Janeiro, com Rio Vermelho, em Salvador. Uma espécie de enclave residencial no meio da metrópole, com um conjunto de casas construídas provavelmente lá pelos 50 ou 60, que se torna uma zona de bares turísticos para hipsters, com pousadas descoladas de jeitão “alternativo”.
Circulamos entre muitos lugares que pareciam bastante legais para uma incursão pela noite de Santiago. A despeito disso, não nos deixamos seduzir pelas promessas de aventuras noturnas porque, como a viagem era curta, precisávamos manter o foco.
Procurávamos por La Chascona, a última casa em que um de meus xarás mais famosos, Pablo Neruda, viveu.
Vou pedir licença aqui a vocês que leem esses meus relatos de viagem para uma confissão: sempre tive problemas com meu nome.
Passei a primeira infância na virada dos anos 70 para os 80 na zona sul de Natal, que na época era um local ermo e distante, situado muito longe dos espaços da classe média alta que se espalhavam ali por Tirol e Petrópolis. Naqueles anos, a fazenda do coronel Cascudo conseguia ser ainda mais provinciana do que é hoje e calhou de que eu só viesse a conhecer outro sujeito com o nome “Pablo” quando tinha uns dezesseis anos.
Até essa data sempre senti que havia sido batizado com um nome extraterrestre. Perguntavam se eu era de Natal, se minha família era brasileira, se eu era “gringo” e o porquê de eu ter aquele nome esquisito.
Sabendo que meus pais, no começo dos setenta, frequentavam os retiros hippies que Walter Von Berbe organizava com a juventude contra cultural da capital lá pras bandas da praia de Maracajaú, sempre suspeitei que havia algo de lisérgico na escolha do meu nome.
E havia mesmo.
Turbinados por aditivos químicos que não sei bem quais eram, meus pais resolveram batizar o primeiro filho com o nome de “Pablo”, após um “vatapá” na Maracajaú de Walter Berbe, temperado pela música de O Milagre dos Peixes, álbum de Milton Nascimento, lançado em 1973. Pra completar, depois desse Pablo “miltoneano”, tacaram um “Moreno”, em homenagem ao filho de Dedé e Caetano, que iria aparecer pelado com os pais na capa do disco Jóia de 1975, lançado um ano depois do meu nascimento.
Em função disso eu tinha de me desdobrar no tempo do ensino fundamental, na escola católica em que estudei, administrada por freias filhas de Sant´Ana, para responder a pergunta curiosa das professoras acerca daquele nome exótico e não dar bandeira sobre as minhas origens “hipongas”.
Diante de minha ansiedade com aquele nome estrangeiro, minha mãe ofereceu uma saída honrosa para o vexame público: “Diga que seu nome foi escolhido para homenagear os três ´pablos´. Picasso, (das artes plásticas), Casals (da música) e Neruda (da literatura)”.
Foi assim que Neruda passou a fazer parte da minha vida, sendo posto, como uma homenagem à alta cultura literária e as tradições de origem ibérica, no lugar de uma viagem lisérgica ao som de Milton Nascimento, em Maracajú.
Cascudo teria adorado.
Confesso que, apesar de sempre usar o nome do ilustre bardo chileno em vão para justificar meu próprio nome, só fui mesmo ler alguma coisa de Neruda após assistir o filme O Carteiro e o Poeta, lá pela metade dos 90. Pois é, amigo velho… na verdade não foi a literatura, mas sim o cinema, que atiçou minha curiosidade pela obra do autor de Canto Geral.
O fato é que La Chascona não é a única casa de Neruda que foi transformada em museu pelos chilenos. Além dessa, em Santiago, ainda há mais outras duas: La Sebastiana, em Valparaíso e a de Isla Negra em El Quisco. Para mim, particularmente, a casa de Santiago seria a mais importante de ser visitada porque foi nela onde o corpo do poeta foi velado.
Morto apenas doze dias após o golpe de 11 de Setembro de 1973, que derrubou o presidente socialista Salvador Allende, Neruda teve sua casa invadida por partidários de Pinochet e milicianos de extrema direita. Matilde, sua última companheira, decidiu velar o corpo do poeta em meio aos destroços deixados pela horda invasora. Abriu sua casa para que a imprensa internacional pudesse ter a dimensão da barbárie que se abateria sobre o Chile, ao ver o que haviam feito com a casa de um recém laureado com o prêmio Nobel de literatura.
A construção é, sem dúvida, uma espécie de poema em forma de casa. Marcado por uma singularidade bem peculiar, o terreno é composto por três construções espalhadas em um declive, sendo que cada construção tem uma certa história, uma concepção, uma função e um significado. Também tem um certo tom de sofisticação latino americana, bem como uma preocupação com a exibição pública de taças, vasos, esculturas e obras de arte que me soou meio provinciano.
No fim das contas me pareceu estranho pensar que aquela era uma residência de um comunista old school. Há muito pouco da sobriedade leninista naquele lugar. O que há de sobra é um desejo de autoafirmação, um mergulho no ego do poeta e na imaginação daquele Pablo, o que não parece de modo algum casar com o senso de sacrífico pessoal e de disciplina coletivista que marcava a abordagem dos velhos militantes comunistas.
Comecei então a me perguntar se o comunismo de Neruda não seria um modo do poeta, que era filho de um ferroviário, quitar o débito com sua classe social de origem, mesmo tendo ascendido ao paraíso burguês com seu trabalho de diplomata.
Logo, logo, a memória de seu velório depois da catástrofe de 11 de Setembro, e a sensação de que o poeta havia morrido de tristeza depois do golpe que derrubou Allende, me fizeram esquecer ressalvas moralizantes e possíveis cancelamentos que a militância 2.0 desse século XXI poderia lançar contra meu xará. Mais interessante seria aproveitar a visita e mergulhar sem muito pudor em suas contradições do que tentar julgar suas escolhas pessoais.
Afinal, quem sou eu para acusar Neruda de “esquerda caviar” ou fazer algum tipo de patrulhamento ideológico apontando para um certo “subjetivismo burguês” expresso nos cômodos de sua casa em Santiago?
Passei um bom tempo diante do tronco da imensa árvore que atravessava, bem ao meio, a sala de estar, passando pelo quarto de dormir logo acima e saindo pelo teto, para sombrear com uma copa frondosa, o telhado da parte da casa onde o poeta dormia. Aquela exoticidade (uma árvore cortando a casa bem no meio) dava a sensação de que o espaço privado, com sala de TV e quarto de dormir, fora construído para realizar um sonho de infância: ter uma daquelas casas em árvores que os pais costumavam a construir para os filhos em um tempo em que a diversão das férias escolares não se resumia a jogos digitais em tablets ou smart fones.
Num espaço chamado “bar de verão”, que fica na parte alta do terreno, o museu apresenta uma lista com imagens de poetas que influenciaram Neruda. Como não poderia deixar de ser, a figura de Walt Whitman está lá, onipotente, marcando a herança paterna de sua linhagem literária e deixando à mostra sua ansiedade de influência (que, segundo o crítico literário Harold Bloom, seria a mesma da de Fernando Pessoa).
Na biblioteca, em meio a alguns livros que restavam ao redor da poltrona, assentada embaixo de uma larga janela de vidro que nos anos 60 deveria emoldurar a cordilheira, mas que agora mostra apenas os prédios mais altos de uma Santiago que rivaliza com a montanha, aparece um exemplar de O Canto Geral, a obra fundamental de Neruda publicada em 1950.
Lembrei que uma edição brasileira frequentou minha estante no final dos anos 90 apenas para desaparecer em alguma daquelas inúmeras noites etílicas que protagonizei na virada do milênio com meus velhos camaradas de poesia, lá por nosso apartamento de Ponta Negra.
Na hora só consegui acessar, folheando o livro em castelhano que estava perto daquela poltrona, alguns versos do poema “As Alturas de Machu Picchu”, compostos por Neruda após uma visita a cidade perdida dos Incas no Outono de 1943, época em que o poeta retornava a Santiago após três anos como Cônsul-geral do Chile na Cidade do México.
O que foi o homem?
Em que lugar de sua ampla conversação
entre sílos e apitos,
em quais metálicos movimentos
vivia o indestrutível, o imperecível, a vida.
Essa é uma pergunta que sempre me faço, quando visito essas casas transformadas em museus mundo a fora. Essas casas que continham pessoas, que guardavam essas biografias, que protagonizaram delírios de amor e intensidades diversas entre um fato e outro da vida privada, que transmutaram o tédio desolador do cotidiano do tempo em poesia, em arroubos etílicos, em longas conversas em noites de música e amizade. Naquele mundo particular transformado em museu, a figura privada de Neruda se misturava à mitologia de sua biografia pública. Mesmo assim, a pergunta, a despeito de todo esforço museológico daquela casa, continuava pairando sobre o ar daquela tarde, no bairro de Bela Vista: o que foi aquele outro Pablo por entre essas paredes de afetos perdidos e memórias dissolvidas no avassalador e incontornável areal do tempo?