Praga – República Tcheca, 17 de Abril de 2014
Na primeira manhã em Praga a gente percebeu que era realmente primavera. O entorno do hotel estava bem iluminado pela luz solar e a cidade, apesar do frio de dez graus, estava cheia de turistas zanzando pra lá e para cá pelas ruas.
A primeira impressão diurna que eu tive da cidade de Kafka foi a de que ela é realmente uma cidade de fronteira. Uma fronteira fluvial, espalhada pelo curso do rio Vlatva, em uma confluência de tendências arquitetônicas que não se reduz àqueles costumeiros prédios velhos desse imenso museu a céu aberto que alguém batizou de Europa. Há um nítido espírito de fronteira que se espelha em uma arquitetura que ora flerta com o oriente eslavo e suas cúpulas arredondadas, num estilo que lembra as imagens do Kremlin; ora paquera com aquelas pontas góticas e linhas retas germânicas que nos dizem que o ocidente está logo ali, descendo o curso do rio.
E o rio é o Vlatva, um afluente do Elba, que, por sua vez, faz a curva para o oeste levando aquelas águas frias que descem dos bosques montanhosos da Bohemia para cruzar a Alemanha até chegar ao Mar do Norte, em Cuxhaven, perto de Hamburgo.
Seguindo a pé pelo curso desse rio, dobramos à direita em direção à cidade velha e acabamos por chegar numa praça próxima do prédio da prefeitura, em cuja parede sul está afixado o Orloj (famoso relógio astronômico do século XV). A estrutura do relógio é bem interessante, com um show mecânico de imagens que desfilam de hora em hora, misturando símbolos astronômicos com referências aos apóstolos de cristo.
Esse festival de engrenagens e roldanas mecânicas que projetam imagens em movimentos circulares pela parede da prefeitura faz com que sempre tenha muita gente na frente do prédio com máquinas fotográficas e celulares apontados para o alto. É uma maravilha para os que admiram o mundo da técnica medieval e estudaram, com mais afinco do que eu, a mecânica clássica na disciplina de Física do ensino médio. Pra mim, que sou de humanas, é mais uma curiosidade do que um maravilhamento, por isso me interessou muito mais um ziguezaguear aleatório pela feira livre que ficava bem ao lado, em uma praça em cuja placa se lia: Staromēstké Námêsti (e não me pergunte o que isso significa que eu não tenho a mínima ideia). Só no hotel, consultando o Google, descobri que se tratava da praça mais antiga da cidade velha.
E para fazer jus a essa antiguidade, haviam barracas amontoadas vendendo todo tipo de quinquilharias em meio a fumaça e ao cheiro forte de carne assada. Espalhados aqui e ali a gente via porcos inteiros espetados em ferros, girando sobre brasas em um movimento lento e hipnótico, que faria qualquer vegano mais sensível desmaiar de horror.
O cenário todo era bem ruidoso e me fez lembrar, em alguns momentos, uma daquelas narrativas cinematográficas de fantasia sobre a Idade Média europeia, especialmente porque, em frente ao Palácio Kinsky, encontrei um grupo que se dizia de “música tradicional” da Bohemia, tocando instrumentos que pareciam bem antigos e que ajudavam a dar ao ambiente aquela desnorteante sensação de confusão cronológica que faz com que turistas desavisados saiam deixando euros em barraquinhas de bugigangas a torto e a direito.
Sim, é claro…. é a típica “macumba pra turista”. Igual a tantas outras que eu já havia visto, no Peru, na Grécia, na Espanha. Você pega uns músicos, veste os caras com umas roupas esquisitas e diz que são “típicas”; entrega nas mãos deles uns instrumentos exóticos e faz umas variações instrumentais que causem, ao mesmo tempo, aquela sensação de exotismo e familiaridade ao ouvido médio dos transeuntes mais desavisados.
A apresentação do grupo me lembrou aquela rapaziada tocando Imagine de John Lennon na flauta Inca que vez ou outra eu via pela noite de Pipa. Mesmo assim, era o que de mais interessante, fora a cerveja artesanal vendida nas barracas, surgia naquela praça. Especialmente porque Ana já havia me chamado a atenção para quantidade de músicos de rua que a gente tinha visto no trajeto de mais ou menos três quilômetros que percorremos do hotel até o centro.
Não sei se era a primavera, o feriado da semana santa, ou mesmo o clima da cidade, mas o fato é que Praga vibrava música por todos os lados.
Em cada esquina havia alguém tocando. Gente com violinos, instrumentos que lembravam alaudes, guitarras elétricas ligadas a amplificadores e pequenos grupos de Jazz tocando old style com trompetes, clarinetes e trombones. Em todo lugar se podia parar e assistir um pequeno show ao ar livre, pago com um punhado de moendas jogadas num chapéu.
Mas, o que nos empolgou mesmo foi um panfleto que recebemos numa das ruas laterais ao prédio da prefeitura e que anunciava um concerto de música barroca na Igreja de São Nicolau, bem próximo de onde estávamos, pela bagatela de 10 euros. Seriam três peças de Bach, duas delas pra órgão e mais algumas de Corelli e Haendel.
Compramos as entradas na lateral da Igreja e ficamos na fila aguardando a segunda sessão da apresentação. A Igreja de São Nicolau é uma construção do barroco tardio, do final do século XVIII, que foi erguida sobre as ruínas da uma outra igreja gótica datada do século XIII. Olhando por fora você não dá muita coisa por ela, apesar de ser uma construção bem imponente.
O grau só vai altear mesmo quando você entra no prédio.
Lá dentro a luz do dia atravessou a cúpula esverdeada, cruzando a nave da Igreja de oeste para leste, anunciando que a tarde já começava a apontar o inevitável colapso do sol. As estátuas projetadas pelas paredes, em sua paradoxal mobilidade estática, típica da exuberância barroca, lançavam-se dramaticamente em direção ao altar, que parecia vibrar ao som do imenso órgão de tubo que ficava na parte superior da construção, bem em frente da nave central. Quando as peças de Haendel começaram, o conjunto de violinos, violas, violoncelo e contrabaixo parecia botar pra dançar a luz da tarde, esverdeada pela cúpula central.
Esse tipo de concerto dentro de Igrejas quase me faz esquecer a memória da inquisição, que até hoje me cria dificuldades, especialmente quando o quesito é decorar o “credo” católico.
Mas o maior de todos estranhamentos, naquela igreja de quase trezentos anos, era a quietude que antecedia a música.
Para um sujeito vindo dos trópicos, acostumado ao grande falatório em apresentações musicais em casas de show e bares noturnos, gerou uma certa ansiedade perceber o silêncio, tanto da audiência, quanto dos músicos que se comunicavam só com olhares, no intervalo entre um movimento e outro. Nem os organizadores do evento, que andavam como se flutuassem por dentro da Igreja nos momentos que antecediam a apresentação, pareciam fazer qualquer ruido em quaisquer frequências captáveis pelo ouvido humano.
Antes que os músicos pudessem caminhar até o altar para posicionar seus instrumentos, as pessoas entravam e sentavam nos bancos de madeira sem dizer nenhuma palavra. Sentavam, aguardavam e viam as portas serem fechadas, as luminosidade do dia diminuir e a música começar. Tudo no mais absolto e denso silêncio.
Os músicos, também silenciosos, caminharam até o altar carregando seus instrumentos pelo corredor central da Igreja. Eles simplesmente tocavam. Não explicavam nada, não agradeciam a ninguém, não esperavam aplausos no fim das músicas. Aliás, no fim da apresentação, ninguém aplaudiu.
As pessoas apenas se levantaram e foram embora: silenciosamente.
O único sinal de linguagem humana que se ouvia naquela Igreja durante pouco mais de uma hora e vinte minutos foi a da música.
Era como se o temor reverencial de um deus apolíneo, que cuidava das formas e da harmonia das proporções, impedisse os espectadores de interromper a absoluta prevalência da música como escada para se chegar a esse demiurgo que desenhou o mundo com as proporções geométricas de Bach.
Nos terreiros tropicais do meu Brasil, onde as potências de Dionísio trazem o sagrado cavalgando na vibração rítmica dos tambores; o corpo é sempre o canal do Divino e o movimento da dança é que nos lança naquele abismo de transcendência que nos liberta do nosso inferno cotidiano.
Naquela Europa de dois mil anos de cristianismo, Deus parece morar no silêncio que pinta uma aquarela com as cores de uma música de contemplação, que domina a mente, sem fazer tremer o corpo.
Eu, que já havia experimentado essas duas formas de lidar com o sagrado, no Candomblé e na Igreja, sai daquela apresentação de música barroca com duas certezas poderosas para começar os alumbramentos de mais uma viagem.
A primeira é que Nietzsche estava mesmo certo quando descobriu a grande peleja trágica entre Apolo e Dionísio pelo espírito da música. A segunda é que, se eu morasse em Praga, mesmo sem ser europeu, esqueceria o cheiro de carne queimada da inquisição que sinto sempre que tento rezar o credo e compareceria mais vezes, alegremente, à missa de Domingo.