TERRA ESTRANGEIRA: Os ventos de Abril

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Porto – Portugal, 10 de Janeiro de 2017.

Estamos no Porto há três dias e a temperatura já oscilou um absurdo para os padrões sinuosos e estáveis da Taba de Poty. Enquanto os termômetros sobem e descem, na TV só se fala em Mário Soares.

Aliás, parece que abriu-se definitivamente a temporada de velórios das últimas grandes lideranças políticas do século XX. Depois do comandante Fidel em Cuba, Helmult Kohl na Alemanha e Hashemi Rafsanjani no Irã, chegou a vez de Mário Soares aqui em Portugal.

Uma diferença que eu pude notar, assistindo os noticiários de TV, é que aqui as carpideiras dos personagens públicos não se eximem de fazer avaliações críticas ao defunto que estão velando. O legado de Soares está em análise constante em todos os telejornais, jornais impressos (sim eles ainda existem por aqui) e revistas semanais.

Em Lisboa, milhares de pessoas acompanharam as honras de corpo presente no velório da velha liderança socialista, figura central na reestruturação democrática do Portugal moderno. Segundo pude apurar na capital, conversando com algumas pessoas “de esquerda”, Soares não é uma unanimidade. Chamado de “herói da liberdade” por alguns, tem entre seus críticos aquele punhado de viúvas de Salazar que, ao contrário do que acontece no Brasil, aqui parecem se reduzir a um grupelho minúsculo. Soares recebe também, em outro quadrante do espectro político, críticas fortes entre velhos comunistas do PCP. E são críticas bem fortes mesmo, especialmente entre aqueles que viveram a revolução dos Cravos, 43 anos atrás. Muitos enxergam o papel de Soares no 25 de Abril como o do sujeito que interrompeu o curso daquilo que se encaminhava para ser a primeira revolução socialista bem sucedida na Europa ocidental. Isso, segundo parece a primeira vista, especialmente no Alentejo, local em que a revolução se radicalizou bastante, com a criação, inclusive, de comunas camponesas.

O vento de Abril trouxe, nos anos iniciais da experiência revolucionária, um profundo sentimento emancipatório, que indicava ser Portugal, naquele momento, a vanguarda das experiências revolucionárias na Europa, seguindo o espírito das revoluções Russa, Chinesa e Cubana. A efervescência política daqueles anos quase levou a uma guerra civil, mas Mário Soares, apoiado pelas potências ocidentais (especialmente os EUA e sua sucursal europeia: o Reino Unido) criou uma coalização de forças de centro e de direita e guinou para o que seria uma nova primavera vermelha, talvez a última revolução do século XX, em direção a um modelo mais próximo da social democracia europeia, com as bênçãos do mercado e das chamadas democracias liberais.

Por isso que, ao sairmos de Lisboa, eu já sentia que a morte de Soares seria comemorada com brindes de Ginja por alguns dos velhos militantes comunistas que viram seus sonhos utópicos colapsarem diante do pragmatismo reformista de uma esquerda que não tem muita vocação pra revolução.

No fim das contas fizemos a viagem de Lisboa até o Porto em Comboio (o nome que dão aqui para “Trem”). O percurso, que eu já havia atravessado de carro a primeira vez que estive por aqui dez anos atrás, foi super tranquilo, o que me fez mais uma vez pensar em que tipo de alucinação fóssil fez com que um país de proporções continentais como o Brasil tenha trocado o trilho de ferro pela estrada de asfalto. Não faz o mínimo sentido, a não ser para o capital que gira em torno do automóvel e da gasolina (esses dois assassinos do futuro) que a gente, vivendo em um país onde cabem uns dez portugais, não tenha um sistema de transporte ferroviário interestadual decente.

A imagem da grande ponte cruzando o Douro, unindo Vila Nova de Gaia à cidade do Porto, é de uma beleza impressionante que bota abaixo (os lisboetas que me perdoem), sem nenhuma cerimônia, os encantamentos paisagísticos mais sedutores da capital portuguesa.

Apesar da temperatura no Porto ser mais baixa, a visão do mar me faz lembrar de casa. Por algum motivo que não compreendo bem, me sinto mais a vontade aqui no norte, mas não vou teorizar sobre o assunto. O que mais chama atenção pelas ruas do Porto é uma certa sensação de segurança que me faz retornar à Natal da minha infância e da minha adolescência, uma cidade em que a vida acontecia a céu aberto e não debaixo de tetos de shopping centers ou mesmo rodeada pelas cercas elétricas dos condomínios fechados.

Por outro lado tudo isso me parece muito frágil. Talvez o fato de eu ter visto o que aconteceu com minha cidade nesses últimos vinte anos me faça pensar que esse espírito de condomínio ordenado que a Europa se tornou nas últimas décadas de hegemonia neoliberal não seja algo que se possa sustentar por muito tempo.

Se no século passado o Brasil, encapsulado em uma estufa tropical posta longe demais das capitais, foi um lugar de refúgio para europeus que escapavam da guerra e para portugueses que  fugiam da pobreza e da repressão dos anos de Salazar, agora a coisa parece ter se invertido. Por que então não imaginar que no ritmo do pêndulo da história, a Europa volte a ter uma guerra generalizada nesse século? É bem provável.

Mas, por falar em Salazar, fui hoje também a Braga para uma reunião com meu orientador aqui na Universidade do Minho, professor Bernhard Sylla. Um alemão bastante acessível que se dispôs a guiar meu estágio de pós doutoramento por essas bandas. Ele ficou preocupado quando eu disse que iria me instalar no Porto e quis saber como eu iria fazer para vir cumprir as atividades na universidade (que implicariam inclusive ministrar algumas aulas na graduação de Filosofia).

____ Eu venho de comboio – disse ao professor – são cinquenta minutos do Porto pra cá.

____Pois então – ele disse – muito tempo.

Cinquenta minutos. Isso é o que eu gasto para sair da garagem da minha casa no protetorado de Nova Parnamirim e ir, de carro, até o estacionamento do campus do IFRN Natal Zona Norte, onde trabalho. Quando disse isso ao professor Sylla ele me respondeu enrubescido: “ah… pois sim. Eu esqueci. O Brasil é muito grande”.

“Grande e engarrafado”, emendei na sequência, pensando no tráfego (que por sorte sempre pego no contra fluxo) das duas únicas pontes que ligam as bandas partidas de minha cidade.

Mas não daria mesmo pra ficar em Braga porque Ana e as crianças talvez não se adaptassem bem. Afinal, foi em Braga que, em 1926, Salazar proferiu o famoso discurso que deu início a contra revolução conservadora em Portugal e que mergulhou o país em uma ditadura que misturava um catolicismo atávico de bases medievais a uma liturgia típica da extrema direita dos anos 20 e 30 do século passado.

Braga é a capital da região, segundo me informou a amiga Renata Silveira (uma espécie de embaixatriz não oficial da nação potiguar no Porto). O Minho parece ser a região mais atavicamente ligada a esse catolicismo conservador português. Foi ali, no Minho, que nasceu Afonso Henrique, o rei que unificou Portugal e “expulsou” os mouros do país. Coloco assim, entre aspas, porque há fortes indícios de que a tal “invasão” moura na península ibérica tenha sido mais uma conversão coletiva ao islamismo do que uma invasão de fato.

A instalação do califado de Córdoba pode ser lida também como uma reação das populações ibéricas à vigorosa repressão política patrocinada pelos reis visigodos. Essa repressão teria feito com que as populações, especialmente do sul, aderissem ao islamismo dos Abássidas que, naquele período, era muito mais “civilizado” e tolerante do que as práticas selvagens dos cristãos germânicos do norte.

Se isso for correto, a famosa “guerra da reconquista”, lembrada simbolicamente nas festas populares brasileiras com o combate do cordão azul (dos cristãos torcedores do futebol clube do Porto) contra o cordão encarnado (dos mouros, torcedores do Benfica), não teria sido de todo uma “reconquista”, mas sim uma “reconversão”.

Se Salazar e o salazarismo surfou nessas mitologias cristãs de batalhas medievais e de guerras religiosas para edificar um Portugal fascista, o vento de Abril que trouxe e levou embora a revolução foi uma janela para a utopia. Foi, como a morte de Mário Soares parece atestar neste inverno português, uma despedida de três séculos em que fazer revoluções era uma possibilidade posta à mão.

Espero que esse vento revolucionário, mesmo já tendo se tornado uma leve brisa de memória, possa manter Portugal afastado de seus fantasmas medievais e de seus mitos coloniais que alimentaram os fascismos de ontem e que alimentam os de hoje.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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