TERRA ESTRANGEIRA: O rio da minha aldeia

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Castelo de Paiva – Portugal, 18 de Julho de 2006

Sempre fui fanático por mapas. Uma das imagens mais recorrentes da minha primeira infância são os mapas que haviam em um imenso atlas branco que minha mãe ganhou após ter comprado todos os fascículos da Enciclopédia Barsa. Talvez, por ter nascido numa cidade litorânea, sempre foquei no horizonte. Sempre acreditei que, depois do horizonte, não poderia haver um abismo, um buraco, uma linha divisória onde se lê uma placa com os dizeres: “aqui termina o mundo”.

Acabei meio que, por causa disso, passando um bom tempo da minha vida de criança olhando mapas de lugares estranhos e distantes. Foi assim que eu decorei o nome de muitas das capitais dos países que existiam nos anos 80 e quase todas as bandeiras nacionais daquele mundo de fins de guerra fria. Ali aprendi os nomes dos desertos, dos oceanos e das cadeias de montanhas. Lembro que tinha medo da Ásia. Não sei porque, mas eu tinha medo da Ásia. Era muito grande, com aquela vastidão desconcertante. Um bloco imenso de terra, distante demais da minha pequena aldeia litorânea. A África também me assustava, mas, talvez, devido algum impulso genético, também me deixava fascinado. Especialmente a costa ocidental, isso porque sempre que eu olhava o mar com aquela cara de quem está procurando alguma coisa, meu pai dizia: “Do outro lado é a África”.

Por causa da minha bisavó paterna (Dona Joana Fernandes de Macêdo) filha de uma escrava da serra da Tapuia, alforriada pela lei áurea em 1888, eu sempre soube que a África também caminhava dentro de mim como sabia também que algo meu veio de Portugal.

E foi olhando o mapa de Portugal que eu vi o nome daquele rio.

Não sei qual é seu sobrenome, amigo velho, mas também deve soar estranho para você  alguém carregar na certidão de nascimento o nome de um rio. O rio do meu nome é o rio Paiva, que nasce na serra de Leomil na freguesia de Pera Velha lá pras bandas da Beira Alta e que desagua no rio Douro, já bem no limite entre Viseu e Aveiro.

Tem gente que tem sobrenome de árvore, outros de bicho, eu tenho o sobrenome de um rio. Mas esse deveria ser um rio muito pequeno porque ninguém no Brasil sabia que ele existia. Muita gente já ouviu falar do Tejo, alguns conhecem o Douro, mas o Paiva… nem minha avó materna, que era Paiva, lá do velho alto oeste potiguar e que me respondia “nossa  família veio de Portugal”, sempre que eu perguntava sobre nossas origens.

“De onde?” – eu insistia.  “Não sei… só sei que é de Portugal” ela respondia. “E quando a gente veio?” – eu emendava curioso: “Não sei… só sei que faz tempo”, dizia ela achando graça no meu interesse infantil por essas questões de origem.

Na verdade a região de Paiva parece ter sido uma daquelas importantes regiões desconhecidas de Portugal. Isso porque ela não aparece no meu guia de viagens publicado pela Folha de São Paulo e porque ninguém que eu tenha perguntado em Sintra, Lisboa ou Viana do Castelo, sabia ao certo onde ela ficava.

Na Internet, num site de famílias portuguesas, o rio de Paiva não é citado. Sobre a família e o brasão eles dizem apenas: “o seu nome é de raízes toponímicas, pois deriva do nome da terra de Paiva”. O nome da família parece ter surgido como apelido com um tal João Soares de Paiva. Um trovador que viveu entre 1275 e 1325.

Nascido setecentos anos antes de mim, João Soares de Paiva parece ser o primeiro Paiva registrado na história. Nesses setecentos anos, o nome desse rio atravessou o mar, foi parar no pé da serra do Lima, em Patu, e de lá espalhou-se pelo oeste de um estado escondido no Nordeste do Brasil. Como isso pode ter acontecido, para mim, é um mistério dos mais densos. Mas o fato de não se saber muito sobre a existência desse rio não implica que, de um modo ou de outro, essa não seja uma região importante.

Afirma a Internet  que a região de Paiva teria refugiado as primeiras tribos celtas que habitavam Portugal antes mesmo da invasão romana. Esses celtas, adoradores da deusa (vestida com os trajes de Nossa Senhora, no medievo ibérico), após a suposta “invasão moura” da península, teriam formado um núcleo de resistência cristã, contra a influência mulçumana. Paiva seria então uma região de fronteira. Um limite que separava os mundos.

Chegando no Porto comprei um guia mais detalhado da região e teci um plano de viagem até um lugar que finalmente aparecia no mapa: o “Castelo de Paiva”. Atravessaríamos o Douro e pegaríamos uma estrada pela margem norte do rio. Um pouco mais de uma hora de viagem chegaríamos ao tal “Castelo”. Ele ficaria bem na confluência do Douro com o Paiva. Lá eu encontraria meu rio, meu castelo e um bocado de parentes que me receberiam com festa e poderiam me responder a estranha questão: “como esse nome que eu carrego foi parar nos sertões oestanos lá pelo fim do século XVIII e começo do XIX?”.

A estrada é uma das mais belas que eu percorri em Portugal (apesar dos buracos). Numa região cortada por morros, o vale do Douro se estende por vários e vários quilômetros de paisagens belíssimas. Cidadezinhas penduradas em colinas, vinhas que se espalham por todo lado, pontes e barcos que enchem seus convés de uvas que vão se transformar em vinho para serem comercializados em Vila Nova de Gaia (cidade do vinho do Porto, na foz do Douro). Numa determinada altura pegamos uma ponte que nos levou à margem esquerda do rio, seguindo as placas que me indicavam “Castelo de Paiva”.

A região é acidentada e bem povoada. Passamos por uma outra ponte, estreitíssima, que a despeito de só permitir a passagem de um carro por vez, é de mão dupla (mantendo a tradição de trilhas estreitas do interior do país em oposição as largas autoestradas nacionais). Meio que sem saber o que fazer, nem para onde ir, resolvemos parar num lugar que parecia um estacionamento, ao lado do Café São Miguel.

Localizado no alto de uma colina, o café São Miguel tem um belo terraço com uma vista privilegiada para o Douro.

Logo, logo, um rapaz com um problema na perna veio nos atender. Pedimos algo para comer e eu aproveitei pra perguntar se ele sabia como se faz para chegar no Castelo de Paiva. Ele me explicou que as pessoas do lugar dizem que realmente havia um Castelo naquela área, mas que hoje ele não existe mais. Nem a localização de suas ruínas é mais exata. Parece uma espécie de Castelo Fantasma, habitado pelos espectros dos antigos cavaleiros da ordem de Cristo. Alguns dizem que ele ficava numa ilha fluvial, bem na foz do Paiva. No local aonde ele se dissolve para se misturar com o Douro.

“Você conhece alguém da família Paiva, que more por aqui?”.

O rapaz olha para mim como se demorasse a entender minha pergunta. “Paiva… havia uma senhora que morava cá em baixo e era dessa família. Mas ela vendeu a casa e mudou-se para o Porto”.

Nada de parentes. Nada de castelo. Ao menos o rio deveria realmente existir. O rapaz diz que tem um balneário bem perto da tal ilha e que, com um pouco de esforço dá para chegar lá de carro.

Pagamos a conta mas, na saída, descobrimos que o estacionamento era, na verdade um pátio de compra e venda de veículos e que, o pior… a dona do estabelecimento havia fechado o portão. Estávamos presos. Confinados para sempre no café São Miguel. Condenados a ficar lá em cima dos montes vendo o passeio tedioso dos barcos que sobem e descem o Douro em busca de uvas. Mas o rapaz foi gentil, e mesmo com dificuldades na locomoção acabou indo atrás da proprietária do terreno para que ela pudesse abrir o portão e nos libertar, isso foi muito providencial porque evitou que nossa narrativa de fantasia medieval se tornasse um thriller de terror rural.

Há realmente uma ilha na foz do rio Paiva. Chamada hoje de Ilha dos amores é um pequeno banco de areia, com belas árvores e alguns banquinhos para os namorados. Achei extremamente improvável que em algum momento da gloriosa história de Portugal existisse um castelo naquele minúsculo banco de areia.

O fato é que o Paiva é realmente um rio pequeno e marrom, que desce dos montes portugueses da Beira Alta para sumir nas águas do Douro. Não é um rio imponente, nem largo. Tão pouco parece ser um rio navegável. É só um riozinho que corre por uma dessas inúmeras aldeias do mundo. Não é o Tejo, nem também é o Potengi, o rio da minha aldeia potiguar.

Talvez meu nome não seja o nome desse rio. Talvez os Paiva do Brasil tenham vindo de outras terras e de outros rios. Talvez eles tenham esquecido os nomes de seus rios nas brumas metafísicas da grande dor, da grande guerra e do festim de sangue e violência sexual que foi a colonização dos sertões no Nordeste brasileiro.

Na página de famílias portuguesas que achei na Internet, não aparece o nome de Francisco Dias de Paiva, amo do Capitão Mor de Pernambuco, Mascarenhas Homem, que em 1598 partiu do Recife em direção ao Forte dos Reis Magos, em Natal, para libertar os portugueses sitiados pelos Potiguaras na foz do Potengi. Esse Paiva mão parece ter lugar na genealogia das famílias nobres portuguesas. Também não havia registro do nome de Diogo de Paiva, que nos arredores de Recife, em pequenas propriedades rurais de Camaragibe, São Bento e São Martinho, “fazia esnoga” em casas judaizantes, celebrando o Iom Kipur e a festa do Sucot durante o período da dominação holandesa no começo do século XVII.

O fato é que esse nome atravessou o oceano e deve ter se espalhado pelos sertões depois de muitas guerras, muito fogo e muito sangue, indo parar, de um modo ou de outro, no alto das terras do oeste do meu estado, até chegar naquele sítio, no pé da serra do Lima, onde minha mãe nasceu em 1946.

Há uma névoa que torna nebulosa a visão de nosso passado. Tal qual um castelo fantasma, numa ilha minúscula, na foz de um rio perdido que não aparece no guia de Viagens da Folha, apartado do mundo exterior por uma bruma de esquecimento.

Minhas origens são vazias e fluídas. Correm como o rio que atravessa cordilheiras. Como brasileiro, posso ser quem eu quiser. Posso escolher para qual pedaço de meu corpo e para qual gota de meu sangue eu quero render minhas homenagens. Sou um bantu fora da África, um celta sem castelo, um judeu sem minha Lei, um tarariú sem minha tribo. Como potiguar, tenho todos os rios, de todas as aldeias do mundo erodindo minhas veias. Essa é minha mais especial benção e minha mais terrível maldição.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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