TERRA ESTRANGEIRA: Ainda bem que eles não têm carnaval

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Por Pablo Capistrano

Buenos Aires – Argentina, 05 de Fevereiro de 2016

Saímos de Natal ontem em direção à Buenos Aires assombrados com os boatos de caos e desordem generalizada no país de Maradona e Lionel Messi.

Dois conhecidos que fizeram doutorado na capital portenha repetiram, aparentemente sem combinar um com o outro, o mesmo discurso sobre a “grave crise” que assola nossos hermanos do sul: a inflação disparou após a eleição de Maurício Macri, os preços estão pela hora da morte, há demissões em massa de funcionários públicos, redução de salários dos professores, protestos tomam conta das ruas, assaltos no metrô…

Nada disso me pareceu real quando sobrevoamos a cidade construída às margens do Rio da Prata, que, pela janela do avião, se mostrava particularmente translúcida, iluminada e serena (se é que isso é possível para uma metrópole).

A topografia de Buenos Aires me lembrou a de Recife, uma cidade plana, com muitos prédios, onde a paisagem urbana se descortina com a ajuda de viadutos.

Ao chegarmos no flat da Recoleta às 19:00 horas, antes de sairmos para jantar, já estava convencido de que os auspícios de apocalipse que meus colegas haviam me transmitido faziam parte mais do imaginário brasileiro sobre a Argentina, do que um traço incontornável da realidade daquele país, cujo destino, posto pela história e pela geografia, é estar ao lado do Brasil como um duplo complementar.

Após passar pelo famoso obelisco da praça da República, no cruzamento das avenidas Corrientes com a 9 de Júlio, erguido em 1936 em comemoração ao centenário de fundação da cidade, dei de cara com um prédio, ornado com uma gigantesca imagem de Evita Perón e um pouco mais a frente, com um grande painel pintado em um muro no qual uma imagem colorida de Nestor Kirchner aparecia em um primeiro plano, diante dos rostos de Rafael Correa, Evo Morales, Chaves e Lula que, postas de modo espectral no fundo da figura, pareciam observar os transeuntes a partir de um espaço profético da história, junto à Guevara, José Marti, Sandino, Allende e outros revolucionários latino americanos.

A impressão que essas imagens, postas no passeio público, me davam, é que a política é um tópico onipresente nessa cidade. Isso pareceu se confirmar quando, ao chegar no hotel e ligar a televisão, passei a ver reportagens de TV em que diretores do sindicato dos professores em greve davam entrevistas para expor de modo claro e direto suas reivindicações (coisa impensável de ocorrer no Jornal Nacional, diga-se de passagem).

Na programação da TV também havia debates sobre temas de política internacional em que (pasmem) se ouvia análises divergentes sobre um mesmo tópico! Esse fato me deixou bastante impressionado, tendo em vista o que me acostumei a assistir no programa de política internacional de William (morei na Alemanha) Waack na Globo News. Cheguei mesmo a acompanhar, boquiaberto, alguns minutos de um documentário narrado por Oliver Stone sobre a interferência imperialista norte americana na América Latina, exibido no que parecia ser uma TV pública. Confesso que fiquei com uma inveja imensa do debate político portenho; uma inveja só comparável  a que tive hoje, no final da tarde, quando visitei a livraria El Ateneo,  na Recoleta.

Livraria El Ateneo, na Recoleta, Buenos Aires.

A livraria foi construída no espaço de um antigo teatro que foi reformulado para servir aos livros. O palco virou um café, a coxia um espaço para exposição de CDs e Vinis, a plateia e os frisos laterais estavam todos tomados de livros e HQs e a cúpula, com pinturas que faziam referências tardias ao neo classicismo, ornava o ambiente dando a sensação de que transitávamos em um templo iluminista, onde os ídolos, antes de serem feitos de madeira e pedra, eram de papel e tinta.

Só em saber que os portenhos haviam transformado um antigo teatro em uma livraria e não em um templo da Igreja Universal, já seria motivo suficiente para deixar minha auto estima patriótica abalada, mas eu não tinha ideia de que o pior ainda estava por vir.

Ao trafegar por meio das estantes de livros, garimpando aqui e acolá alguma boa edição de história ou literatura argentina para compor minha humilde biblioteca, lá no distante protetorado de Nova Parnamirim,  percebi uma coisa que deixou o que havia sobrado de meu orgulho nacional ao rés do chão. A seção de livros de filosofia era bem maior do que a de direito!

É muita humilhação para meu coração tropical.

Como não sentir inveja de um povo que põe uma livraria dentro de um teatro e ainda coloca à disposição mais edições de Platão, Hegel e Santo Agostinho do que do código penal comentado?

Estava difícil segurar essa onda.

A sorte é que ainda temos o futebol (apesar do  nosso tenebroso 7 a 1 dois anos atrás), afinal, todo mundo sabe que a seleção da argentina não ganha nada de relevante no mundo da pelota desde 1993.

Na verdade a visita ao El Ateneo foi apenas a coroação de um dia bem agitado. Hoje pela manhã fomos a Calle Florida no centro de Buenos Aires que, para quem não conhece, me pareceu uma espécie de “Alecrim” portenho, onde o comércio popular de rua se estende por um longo calçadão ladeado por bancas de revista e de pequenos jardins cercados onde se plantam hortaliças e em que vendedores de pacotes turísticos atacam os visitantes brasileiros a cada cinquenta metros tentando convencer os transeuntes que falam português a assistir algum show de tango ou visitar um zoológico onde as crianças podem “tocar os animais”.

Acostumados com esse tipo de “macumba pra turista” conseguimos contornar as abordagens e ainda tivemos condições de ver uma exposição de quadrinhos em um tal de “centro cultural Borges”, que ficava na Galeria Pacífico, uma mistura de shopping center e galeria de arte com uma arquitetura do século XIX, ornada também por uma belíssima cúpula e por várias pinturas murais.

Helena (minha filha de doze anos) adorou a exposição de quadrinistas undergrounds argentinos que estava em cartaz no tal “centro cultural”. As HQs me lembraram em muito o estilo punk de Philipe Vuillemin, Stefano Tamburini ou Francesc Capdevila que apareciam lá pelas bancas do calçadão da João Pessoa em Natal no começo dos anos de 1990, através das páginas da saudosa revista “Animal” (periódico mensal de quadrinhos que fez a cabeça de minha geração).

O fato é que, nas narrativas que  me chegavam lá pela taba de Poty acerca de Buenos Aires, sempre se via, além dos alertas sobre o caos de uma crise econômica sem fim, a narrativa de uma cidade culturalmente muito acima da média das metrópoles brasileiras.

Do primeiro aspecto (o da crise eterna) não vi muitos sinais, do segundo, pelo contrário, haviam muitos índices de que o mito de uma “cidade livraria” parecia fazer sentido.

Nesse quesito, para um escritor de província como eu, que nutre um amor obsessivo e profano pelos livros,  a inveja, esse sentimento tão inerentemente humano e tão humilhantemente sonegado em nossas rodas confessionais, só não chegou a níveis insuportáveis por um único motivo:  não havia sinal de carnaval nas ruas de Buenos Aires.

Eu até soube por um garçon (junto aos taxistas; meus informantes primordiais em viagens), quando fomos agora a pouco jantar aqui em um restaurante da Recoleta, que até pouco tempo nem feriado de Carnaval havia na Argentina, e que foi Kristina Kirchner que resolveu decretar a Segunda e a Terça Feira feriados nacionais para que: “os argentinos possam aproveitar o carnaval no Brasil”.

Fazia muito sentido isso.

Não havia ruido algum de folia nas ruas de Buenos Aires. Tirando alguns cartazes que havíamos visto perto da Calle Florida anunciando shows de Cumbia ou de música eletrônica em alguns clubes e bares da cidade durante o feriado kirchnerista, não há o mínimo indício de que exista carnaval por essas bandas.

A população parece tratar a “festa da carne”, que mergulha o Brasil em cinco dias de sexo, suor e cerveja, com uma solene indiferença.

Foi então que me dei conta de um detalhe inusitado: aquela seria a primeira vez, em 42 anos de existência, que eu, nascido numa quinta feira de fevereiro, às vésperas do Carnaval do ano da graça de 1974, iria passar a festa de momo longe do Brasil.

Mesmo quando fugia da folia, lá pelo começo dos anos 90, para me refugiar em uma Pipa deserta, onde se podia ver o pôr do sol e fumar maconha de graça em cima do morro do cruzeiro sem ter de pagar 50 contos só pra subir a escadaria; onde se comia praticamente de graça na varanda da casa de algum morador cujas famílias ocupavam aquelas falésias havia quase um século; onde se podia tomar banho pelado de meio dia na baia dos golfinhos e não virar assunto em grupos de whats app;  ainda sim, eu estava cercado pelas reverberações dionisíacas do carnaval.

Sempre entorpecido, sempre mergulhado no centro de um movimento de massas que suspende os rigores da ordem do tempo e a crueldade de um cotidiano social quase insuportável, para injetar uma fantasia de transcendência bem no meio de um abismo etílico que se abre diante de um país chapado.

Até quando eu acampava em uma praia deserta da costa branca ou na beira de uma lagoa enfiada no meio das dunas, as ondas magnéticas do carnaval reverberavam pela atmosfera do meu país e me atingiam, quer estivesse eu imerso na solidão dos sonhos lisérgicos daquelas noites sem luz artificial ou envolto no calor entorpecente que o sol de fevereiro derrama sobre as dunas da minha aldeia.

Agora, pelas ruas de Buenos Aires, mesmo após o esforço da ex presidente Cristina Kirchner de trazer Dionísio para rebolar ao redor do Obelisco, ainda sim, reinava a calma esvaziada do cemitério da Recoleta.

Talvez tenha sido isso que me fez reter, ainda por um instante, um resto de orgulho nacional naquele primeiro dia que passei na terra de Jorge Luis Borges.

Ainda bem que eles não têm carnaval.


 

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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