TERRA ESTRANGEIRA: Atravessando a cortina

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Praga – República Tcheca, 16 de Abril de 2014

Eu e Ana estamos de volta ao velho mundo, quinze anos depois da primeira vez que colocamos os pés aqui, durante a guerra de Kosovo e oito anos desde a primeira vez que viemos à Portugal. Dessa vez a gente planejou atravessar a velha fronteira imaginária que separa a banda ocidental da Europa do lado oriental. Minha vontade de visitar alguma ex-República que fazia parte do antigo mundo socialista sempre foi forte, desde o tempo em que imaginava, ainda na infância, naquele mundo bipolar em que vivíamos no começo dos anos 80, uma intransponível “cortina de ferro” separando a Europa ao meio, e o mundo todo em dois blocos ideológicos auto excludentes.

Mas a vontade cresceu mesmo depois de tomarmos uma cerveja no Emporium (o bistrot da tia de Ana que fica em Ponta Negra), com o casal de amigos Alexandre Honório e Kênia Castro. Os dois tinham feito uma incursão pela Europa do Leste quando Alexandre estava em Barcelona, fazendo doutorado, e nos contaram maravilhas sobre Praga. Não sei se foi a legítima Pilsner Urquell do Emporium que deixou nossos olhinhos brilhando, mas o fato é  que depois da conversa botei na cabeça que em nossa próxima viagem teríamos de ir mais para  o Leste. Até porque Praga, além de ser a capital da terra mãe de todas as pislners é também a cidade de Franz Kafka, um dos meus mestres no mundo da literatura.

A questão é que para qualquer brasileiro que mora no Nordeste, em função das rotas aéreas e da proximidade geográfica, a porta de entrada na Europa ainda é Portugal. Por isso tivemos de descer primeiro no aeroporto de Lisboa, para fazer a conexão até a República Tcheca e passamos um bocado de horas por lá.

O Aeroporto da Portela me pareceu estranhamente maior do que minha memória guardava como recordação da primeira vez que vim aqui, no finalzinho da Copa da Alemanha, na década passada.

Naquela época a Europa ainda parecia uma promissora utopia kantiana, com seu curso acelerado em direção a uma “federação de estados independentes” como havia preconizado o velho pensador de Königsberg, ainda no final do século XVIII.

Kant apontou no seu livro: “Para a paz perpétua”, em tom de vaticínio, que a paz definitiva seria, no futuro, inevitavelmente alcançada pela humanidade.  A questão é que ele ainda não tinha muito claro se essa paz chegaria por meio da construção de uma “Federação de Estados Independentes” (no modelo da União Europeia de hoje, ou dos EUA da época de Kant, por exemplo) ou no “calmo e silencioso cemitério do gênero humano”.

Depois da grande crise de 2008, e do vendaval de “primaveras” que varreu o Sudoeste asiático e o Norte da África agora em 2011, lançando a Síria e a Líbia no caos, sinceramente eu não sei de qual dessas duas alternativas estamos mais próximos.

O clima na Europa também não me pareceu o mesmo de sete anos atrás.

Como na primeira vez que vim aqui, no final do século XX, existem auspícios de guerra no ar. Dessa vez na Ucrânia, que flertava com uma entrada na União Europeia e agora vê a Rússia de Putin se movimentar para anexar a Crimeia.

Mesmo assim, ainda dá pra sentir o peso kantiano que paira sobre a Europa. Especialmente quando entrei no banheiro do aeroporto Vlaclav Havel, em Praga.

Acredito que um banheiro público limpo é um sinal  incontestável de vitória do iluminismo sobre as sombras incivilizadas da superstição medieval. O direito fundamental de um transeunte de aeroporto, de um caminhante das rodoviárias desse mundo de meu Deus ou de um peregrino das estações de trem; tem em fazer suas necessidades fisiológicas em um banheiro limpo, confortável e higienizado, talvez seja a maior conquista civilizacional da razão moderna e da civilização eurocêntrica.

Defecar em paz é um luxo que a humanidade demorou milênios para obter e que nossos irmãos de outras espécies, muito em função da precariedade da vida natural, ainda não atingiram.

Já no Aeroporto de Praga, quando chegamos no começo da noite, pude constatar esse avanço civilizacional marcado pela bucha de banheiro posta ao lado do vaso sanitário.

A ideia parece simples e convidativa.

O usuário precisa higienizar o sanitário que utiliza.

Se o modo como lidamos com a nossa própria bosta diz muito sobre o modo como lidamos com nossas próprias emoções, segundo os roteiros psicanalíticos mais clássicos, só poderemos atingir a maioridade emancipatória da razão universal quando cortarmos a dependência aristocrática para com os servos que limpam a porqueira que deixamos no banheiro.

Essa verdade kantiana  (talvez até hegeliana, na verdade; se pensarmos na dialética do senhor e do escravo que aparece na Fenomenologia do Espírito) é jogada na cara de cada brasileiro de classe média acostumado a ter sempre alguém que limpe o seu vaso. Quando chegamos num aeroporto, como o de Praga, e observamos ali, ao lado do bojo, aquela escova dentro do cilindro metálico te lembrando que num mundo governado pela razão e pelos direitos humanos fundamentais, ninguém pode ser obrigado a limpar a bosta de ninguém.

Seria esse o grande benefício que liberalismo proporcionou aos países do leste após a queda do muro de Berlim ou haveria, por trás daquela bucha, um resíduo do senso de coletivização do socialismo realmente existente, que indicava que não haveria mais servos que limpassem a bosta nem senhores que as produzissem sem assumir sua responsabilidade por isso,  em uma utopia comunista?

Eis uma questão fundamental da filosofia política contemporânea.

No apurado, a primeira impressão que tive de Praga foi noturna. Ainda no Táxi que nos levou ao Hotel,  a cidade me pareceu escura e espalhada. Fora do carro fazia uns dois graus e o cheiro do frio batia forte nas minhas narinas.

Não sei se isso é só uma impressão de quem viveu quarenta anos nas zonas tórridas da terra, mas eu sinto que o frio tem um cheiro. Algo facilmente identificável por um olfato litorâneo como o meu. A tessitura do frio na topografia irregular da pele, a sensação  do ar seco e gelado entrando pelos pulmões e se espalhando pelo corpo como se congelasse o sangue e o fizesse desacelerar.

Olhando as placas no caminho percebi que, além do frio, teríamos uma outra grande dificuldade.

O idioma tcheco deve ter se separado do indo-europeu, segundo indicam as pesquisas linguísticas mais abrangentes, por volta de 5000 anos atrás, mas os primeiros registros escritos parecem ter surgido apenas por volta do século X, como palavras soltas em meio de textos escritos em idiomas neolatinos. Hoje ela se classifica em um subgrupo de línguas “eslavas ocidentais” junto com o polonês, o eslovaco e o sórbio.

Como todas essas línguas que estão a um ou dois milénios de distância dos idiomas neolatinos, o Tcheco, para um falante nativo de português, é uma dessas línguas sem escoras. Não tem onde se encontrar para entender o que está escrito nas placas. Com aquelas profusões de consoantes e sinais exóticos sobre as letras que jogam a pronuncia das frases para lugares muito pouco percorridos para as gentes de nossa tribo, a visada nas placas no caminho do Hotel me deixou preocupado.

Senti aquele frio na barriga de quem vai ficar solto em terra estrangeira por alguns dias sem saber porra nenhuma do idioma local e confidenciei a Ana: “tô com medo desse idioma. Será que esse povo fala inglês?”.

“Com certeza” – Ana respondeu e depois emendou pensativa – “Se não falarem a gente se comunica por sinais. Eles vão entender”.

Era a assertiva de Wittgenstein, outro filósofo que aprendeu a pensar em alemão, que nos alertava que as fronteiras de nossa língua são também as fronteiras de nosso mundo.

Lembrei do professor Francisco Ivan, do curso de letras da UFRN, durante meu doutorado, falando afetadamente com um livro de James Joyce em baixo do braço:  “um homem que fala dois idiomas tem duas almas! Um homem que fala três idiomas tem três almas!”.

Por isso continuei a procurar traços dos idiomas conhecidos no trajeto do Hotel. Haviam placas, letreiros luminosos, painéis de shopping, marcas de supermercados e melancólicas torres com o símbolo do McDonalds e da Coca Cola.

Foi então que eu me toquei que se eu tivesse descido nesse aeroporto vinte cinco anos antes, o cenário seria totalmente diferente. Afinal, eu havia atravessado a cortina que separavam os mundos da minha infância, mas o que eu via não parecia muito diferente do cenário de outras cidades mundo a fora.

Talvez não tenha sido a civilidade dos banheiros assépticos e a bucha de vaso sanitário ao lado do bojo a grande herança que o liberalismo capitalista trouxe para uma Praga que um dia foi marxista-leninista.

A uniformidade tediosa dos signos de consumo e a abundância dessas imagens iluminadas de marcas de um mundo globalizado pelo capital me mostravam que já não haviam cortinas ideológicas separando os mundos.

Talvez minha tarefa nesses dias que ficarei na terra de Kafka seja a de um arqueólogo. Alguém que junta resíduos, sinais e indícios de uma época passada. Traços de um mundo bipolar, cindido pela ideologia. Um mundo que parecia muito vivo por quase todo século XX e que ruiu de maneira assombrosa no fim do século em que nasci. Um mundo que, de certa forma, foi também, mesmo que a distância, o mundo da minha infância.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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