TERRA ESTRANGEIRA: Atalho para Santiago

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Santiago de Compostela – Espanha, 19 de Julho de 2006

 Não sei de quem partiu a ideia de viajarmos até Santiago de Compostela, na Espanha. Estávamos  todos bem acomodados em Portugal, em um balneário próximo à Viana do Castelo. Do nada alguém levantou a hipótese de irmos para a Espanha e então, como se fôssemos todos tomados por um furor missionário, a proposta ganhou corpo, atingido proporções de tese hegemônica em congresso estudantil, sendo aprovada por aclamação e palavras de ordem.

Possuídos por aquele fervor peregrino de quem começa uma jornada mística, acordamos bem cedo pela manhã, arrumamos as coisas no carro de sete lugares e partimos para o Norte pela estrada costeira que nos levaria à Valença do Minho, bem na fronteira com a Espanha. Antes de chegar no posto de controle entre os dois países da união europeia, percebemos que não tínhamos muito bem a certeza de onde ficava Santiago. Só sabíamos que era na Espanha e que a Espanha ficava para o Norte.

Aliás, vou confessar pra você, amigo velho, que Santiago de Compostela nunca esteve no meu radar. A cidade só ficou famosa no Brasil após o sucesso de vendas do meu colega de editora Rocco, Paulo Coelho, com sua história meio ficcional, meio biográfica acerca do famoso caminho que os peregrinos tomam para a cidade medieval, em sua busca pela catedral de Santiago, o “matamoros”, protetor da Espanha e caçador de infiéis.

O que eu sabia, muito por causa, na infância, das conversas que ouvia do meu pai com seu amigo, Dr. João Luís (psiquiatra que havia morado na Espanha e casado com uma espanhola de Madrid, salvo engano) é que a península ibérica é um mosaico de regiões mais ou menos autônomas, com identidades étnicas e linguísticas particulares, que transformam os seus clubes de futebol em partidos políticos cuja única coisa que tem realmente em comum, além das mitologias católicas do tempo da guerra da reconquista, é o fato de estarem sob a influência simbólica de um mesmo rei.

O fato incontestável é que precisávamos de um mapa para saber qual rota seguir. Lula, meu cunhado, que estava atuando como navegador durante toda a viagem, precisaria de um roteiro pra não ficar com os olhos o tempo todo colado na estrada caçando uma placa que pudesse orientar o nosso percurso. O problema é que parece que não havia mais nenhum mapa da região em Valença do Minho. “Nessa época do ano todo mundo vai para a Espanha e os mapas desaparecem”, me falou um sujeito num posto de gasolina na beira do rio que separa os dois países.

Então tivemos de usar o bom e velho método de sair pegando uma informação ali e outra acolá para descobrir que o caminho passava mesmo por Vigo e Pontevedra, indo sempre para o norte, por uns 100 quilômetros aproximadamente. Se não houvesse nenhum contratempo bastava simplesmente tomar o rumo da venta, seguir a sinalização da autoestrada certa e em mais ou menos uma hora e meia estaríamos lá.

A estrada é sempre assim. Aprendi a amá-la e temê-la lendo Jack Kerouac, mas confesso que perdi um bocado de meu ímpeto e destemor beatnik depois de ter filhos. Antes dos 22 anos (idade que tinha quando Uriel, meu filho mais velho, nasceu) eu viajava na boa. Não tinha medo nenhum. Atravessei o sertão umas duas vezes de ônibus, indo para São Paulo; andei de carona pelo litoral do Nordeste. Voei até Lima só para depois descer até Arequipa no Peru e seguir pelos Andes até Cusco num ônibus vagabundo e sem aquecimento. Zanzei pelo Sul da Bahia e pelo mediterrâneo, atrás de ilhas e igrejas antigas. A viagem é isso mesmo, sempre um lançar-se, um jogar-se sem muito critério e planejamento na estrada, à espera de que a estrada te ofereça, displicentemente, suas pérolas.

Antes de ter filhos, se eu me lascasse não tinha nenhum problema. Depois que eles nasceram, eu percebei que tinha perdido o direito de me lascar, porque se eu me  lascasse, lascava os filhos também.

Então, mesmo com o On the road de Kerouac na cabeça, eu comecei a desenvolver minhas ressalvas com viagens mal planejadas.

A coisa chegou num nível tal que sempre que vou viajar, me lembro involuntariamente de Woody Allen. Num documentário sobre uma excursão de sua banda de Jazz pela Europa Woody aparecia em Roma reclamando sem parar que os pombos estavam cagando na sacada do seu quarto de hotel. De saco cheio daquela ladainha sua esposa vira e diz: “Não te entendo Woody, quando você está em Nova York quer vir para a Europa, quando está na Europa quer voltar para Nova York”.

Woody então olha pra ela com uma cara de desespero digno de um personagem de Dostoiévski em “Memoria da Casa dos Mortos” e diz: “É porque eu nunca gosto do lugar onde eu estou”.

É isso… como diz meu amigo, o poeta elétrico, Carito Cavalcanti: “ou você muda o lugar, ou você muda de lugar”.

Ainda quando estava no Brasil me disseram: “Você tem de fazer o caminho de Santiago”.

“Sem chance”, pensei comigo mesmo. Já resolvi minhas pendengas com Deus e se tivesse que ir até Santiago pegaria um atalho.

No final das contas nosso atalho foi ótimo. Uma estrada bonita, segura e rápida, com cenários deslumbrantes. Chegamos em uma hora e meia e a cidade estava completamente deserta. Eram três da tarde e o povo estava na siesta (essa instituição espanhola que migrou pra os sertões brasileiros como o nosso bom e velho “cochilo na rede depois do almoço”). Procuramos um restaurante argentino, comemos uma picanha, tomamos um vinho seco e começamos a ter nossas revelações espirituais embalados pela carne mal passada e pelo álcool.

A primeira dessas revelações tinha a ver com as placas. Escritas num idioma bem familiar elas pareciam mais português do que Espanhol e minha sogra, que domina perfeitamente o castelhano, chegou a duvidar que ali fosse a Espanha. “Isso é galego”, a gente descobriu conversando com o garçom no restaurante argentino.

O galego, pra alguns, é uma variação da língua original de Portugal, o Galego-português, que foi a base do idioma lusitano e, segundo outros, era falado no Norte de Portugal. Isso fazia com que entendêssemos mais o sotaque do povo de Santiago do que o de Lisboa, por exemplo. Dai minha curiosidade em saber se, nas variações dialetais que eu ouvia na cozinha lá de casa, na fala da minha avó sertaneja, não estiva contido desde sempre alguma memória arcaica desse idioma matriz.

Tudo parecia perdido em um marasmo daqueles de Domingo a tarde em cidade do interior, aquele que te faz entrar em desespero e até pensar em alguma solução definitiva e radical para sua aflição como, por exemplo, sentar diante da TV para assistir o Faustão.

Foi então que, quando subitamente a siesta acabou, as ruas de Santiago foram se enchendo de gente, como se ondas e ondas de refugiados de guerra estivessem saindo de seus bunkers. Vindos não se sabia bem de onde, galegos e turistas, começavam aos montes a invadir as ruelas medievais que davam para a Catedral de Santiago. Pegamos a esmo uma dessas ruelas e fomos descendo junto com a multidão. Dezenas de lojas vendendo quinquilharias com bandeiras galegas, símbolos celtas, faixas anunciando a grande comemoração do dia da pátria galega, junto de camisas do La Corunha e do Celta de Vigo na vitrine, exerciam em nós um fascínio esotérico sem precedentes. Começamos então a nossa segunda grande revelação espiritual e fomos tomados por uma energia poderosa que nos obrigava a entrar em cada loja daquelas e gastar os poucos euros que nos tinham sobrado comprando camisas com símbolos antigos, estatuazinhas toscas de velhas bruxas alvissareiras e druidas ancestrais.

Numa praça, ao lado da Catedral, um sujeito que parecia estar num surto psicótico gritava seminu, num misto de inglês e espanhol: “Stop! Terrorismos! Stop terrorismos!”. Fiquei olhando o cara e pensando que tipo de revelação espiritual o tinha deixado naquele estado. Antes que pudesse chegar a alguma conclusão, um grupo de umas trinta crianças passou por mim, todas uniformizadas, guiadas por jovens mulheres que cantavam canções incompreensíveis entrecortadas por misteriosas palavras de ordem. Numa loja em que uma vendedora galega (não loura, mas galega da Galícia, com longos cabelos negros, pele branquíssima e olhos azuis; parecendo a irmã gêmea da Amy Lee do Evanescence) nos atendeu. Fui, naquele estabelecimento comercial, possuído por uma estranha energia cósmica que me levava a não retirar os olhos de dois CDs do Luar Na Lubre. Eles estavam lá. Já havia ouvido em MP3 (dica de um aluno meu do curso de Direito da FARN) as músicas do grupo e tentei em vão resistir a tentação de gastar mais um bocado de euros para trazer um pouco do som deles para o Brasil.

Com algum esforço conseguimos nos libertar da poderosa atração espiritual que as lojas de suvenir do centro de Santiago exercem sob peregrinos despreparados e partimos em direção à praça da catedral.

Sentamos no chão da praça, em frente às poderosas torres com imagens de Santiago, ornadas com um tipo de cruz celta que parece uma adaga e que era vista em todo lugar pintada numa concha, presa a um bastão que podia ser adquirido por qualquer peregrino por um euro e cinquenta. Acho que muita gente que chegava lá comprava o tal bastão para tirar fotos que provassem que haviam feito a jornada espiritual para Santiago de Compostela. Cheguei a pensar se Paulo Coelho não foi um desses, porque afinal, como todo bom prosador sabe, inventar histórias que parecem reais é um dos atributos fundamentais do ofício de escritor.

De súbito comecei a ouvir um som hipnótico. Parecia uma orquestra tocando um conjunto de instrumentos do século X. Não conseguia saber de onde vinha, mas tinha certeza que vinha de algum lugar que não era minha própria mente porque o som tomava conta da praça e meu filho Uriel jurava estar ouvindo também. Me deslocando para a direita, descobri, na lateral da igreja, um jovem gordinho numa escadaria escura tocando uma gaita celta. Não era como a gaita de fole do povo da Escócia. Era mais suave. Tem três bicos e um fole. O rapaz ajustava dois desses bicos que ficavam emitindo notas distintas e constantes e, no terceiro, ele tocava a melodia. Uma invenção simples que podia transformar um homem numa orquestra. Deixei mais uns euros no saco que ficava no chão, na frente do tocador e fui procurar a turma para voltar à Portugal.

Às sete horas da noite (que no verão de Portugal ainda era dia) já estávamos de volta para o jantar. Silenciosos, cansados e sem dinheiro. Se você me perguntar o que aconteceu em Santiago de Compostela eu lhe direi sem hesitar, amigo velho, aparentemente nada, absolutamente nada.

Mesmo assim, estranhamente, umas quatro semanas depois, já de volta ao Brasil, minha filha, Helena, de dois anos, estava vendo as fotos da viajem num dia de sábado e começou a gritar, toda feliz quando se deparou com uma imagem das torres da catedral: “Santiago! Santiago!”

Talvez as pérolas da estrada sejam assim. Mesmo invisíveis, constroem seus inquietantes percursos alquímicos no tecer silencioso do espírito.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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