Guimarães – Portugal, 14 de Fevereiro de 2017.
Voltamos hoje de Guimarães. Passamos dois dias por lá, hospedados na casa dos amigos Arlindo Ricarte e Jeane Miranda. Ambos estão fazendo pós-graduação na UMINHO. Arlindo, um doutorado em engenharia no campus Guimarães e Jeane, um mestrado na área de Educação no campus Gualtar.
A cidade é bem menor do que Braga e parece ser possível circular todo o seu entorno central a pé, da estação de trem até as antigas muralhas que cercavam as estreitas ruelas da parte medieval da cidade que hoje estão tomadas por repúblicas estudantis, cafés, bares e estabelecimentos turísticos. Segundo algumas informações que colhi no Porto, há aqui em Guimarães uma torcida organizada racista, que dá apoio ao “Vitória de Guimarães”, time que caiu para a série B do campeonato português no ano passado e que leva em seu brasão a imagem de um cavaleiro medieval. A figura desse cavaleiro está em todo lugar, trajado com uma armadura do tempo das cruzadas, uma espada e um escudo que carrega o sinal dos guerreiros cristãos da Idade Média. Esse signo, quase onipresente na cidade, parece fazer referência ao rei Afonso Henriques, o “pai fundador” do Portugal moderno.
À tarde, visitamos as ruínas de seu antigo castelo, que me pareceu infinitamente mais humilde e reduzido do que os palácios das princesas da Disney, ou das fortalezas da série Game of Thrones e da Terra Média, turbinadas pela imaginação retro-tópica de escritores como G. R. R. Martin e J. R. R. Tolkien..
Afonso lutou contra a própria mãe, que queria manter o chamado “Condado Portucalense” sob controle político do reino da Galiza espanhola. Essa “malcriação” do garoto Afonso foi crucial para os destinos do Portugal de hoje. Mantendo o condado separado dos reinos espanhóis, Afonso pôde preparar terreno para a futura conquista do sul pelos cristãos e a tomada das regiões que ficam além do Douro, no antigo domínio mouro vinculado ao califado de Córdoba. Em função disso, não é de se estranhar que o velho Salazar, fascista cristão e católico ultraconservador, tenha escolhido a cidade de Guimarães, no antigo “palácio dos duques”, bem perto do velho castelo do rei Afonso Henrique, para instalar sua “residência oficial”.
Taí uma coisa que os fascistas sabem fazer como ninguém, isso de manipular o imaginário coletivo da massa com esses mitos de origem. O fato é que parece bem evidente que a semente desse nacionalismo português, que também é religioso (porque cristão) e também racista (porque visigodo e galego), germinou como semente nas insígnias do futebol e aparece como potência política sempre que ideias humanistas e universalistas naufragam diante dos impasses de uma globalização capitalista que impulsiona a desigualdade e a exploração, mesmo aqui, nesse condomínio fechado chamado Europa (que pensa ser um “jardim” temperado cercado de “selva” tropical por todos os lados).
O fato é que Salazar usou muito bem esse imaginário político para manter Portugal, por meio século, sobre uma ditadura brutal. Católico leigo, professor de economia da Faculdade de Direito de Coimbra, Salazar não se encaixava no padrão do líder fascita clássico, antecipado pelo Dr. Freud no início da década de 1920, no seu ensaio clássico “Psicologia de Massas e a análise do Eu”. Ele não era um bom orador, nem mobilizava os ódios populares com algum tipo de discurso raivoso ou violento. Também não liderava um partido de massas, nem era, definitivamente, um líder carismático.
A aura imagética que criou para si mesmo foi a de uma espécie de monge eremita, um tipo de trabalhador incansável e recluso, que se dedicava dia e noite a cuidar do bem estar de Portugal, mesmo que fosse um sujeito bastante licencioso com o champanhe e as mulheres.
Nesse sentido, a imagem pública de Salazar lembra mais a do camarada Stálin do que a de Hitler; e sua habilidade de negociação política, nos bastidores do poder em Portugal, fez com que uma aliança bem montada com as forças armadas o garantisse no poder por várias décadas.
Durante seu regime, Salazar foi pintado como uma espécie de “cruzado”, buscando sempre vincular sua imagem, ora às mitologias medievais de origem, ora a figura de João IV, da dinastia dos Bragança, que libertou Portugal do jugo espanhol, no século XVII.
Como toda retrotopia fascista, o regime de Salazar, que se ancorou em Guimarães para fixar sua residência, guardava uma perspectiva da história como decadência e da modernidade como sintoma de degeneração. Seu lema era “Fátima para a religião, fados para a nostalgia e o futebol para a glória de Portugal”.
À noite, depois de visitar o que sobrou das ruínas do castelo do rei Afonso, e deixar as bolsas no apartamento de nossos amigos, sentamos todos para jantar em uma tasca fora do circuito turístico e tomar um bom “binho berde” (vinho verde) tinto do Minho. O vinho foi servido em uma jarra e o tomamos, não em uma taça, mas em uma espécie de cumbuca de cerâmica branca chamada “malga”, que é típica aqui da região e que era usada para se verificar a qualidade do vinho durante seu processo de produção, e que, aos poucos, acabou se tornando uma forma usual de se beber o “verde tinto” que sempre deixa as marcas de sua “tinta” visíveis na borda da cerâmica (assim como em nossos dentes, vale salientar).
Uma coisa que me pareceu clara, é que o poder agregador da nostalgia ainda parece estar bastante presente no Portugal moderno. Penso até que sonhar com uma época que ninguém viveu (nem de fato suportaria viver) parece ter uma função não apenas política, mas também, terapêutica.
Enquanto comíamos, Jeane me contou que, no verão, as pessoas da cidade fazem um festival ao redor do castelo de Guimarães. Elas se vestem como se vivessem no período medieval, tocam músicas antigas (com instrumentos que simulam as sonoridades que deveriam existir na época do rei Afonso) e servem pratos típicos em barraquinhas.
Pensei na hora que isso deve ser o equivalente a festa de São João no Nordeste, em que as populações urbanas e globalizadas, que durante o ano todo usam roupas do século XXI produzidas na China e consomem alimentos industrializados em sanduicheiras franqueadas de empresas norte americanas, se disfarçam de “matutos” e vão curtir a nostalgia de um sertão imaginário, perdido no terreno da memória coletiva, quer seja na área de lazer dos condomínios ou nas quadras esportivas das escolas de ensino fundamental.
Antes de fecharmos a conta e voltarmos para casa em meio a noite fria que já ia alta, a garçonete que nos atendeu (muito bem, diga-se de passagem), entabulando um diálogo puxado por nós, acabou perguntando, curiosa, sobre o porquê de tantos brasileiros estarem vindo para Guimarães.
___ São estudantes – disse Jeane – muitos são professores que vêm fazer pós graduação na universidade do Minho.
___ Então vocês vêm e depois vão voltar ao Brasil? – perguntou ela sem esconder um certo alívio diante de nossa resposta afirmativa.
Realmente não sei se ela fez essa pergunta em função de uma dúvida sincera sobre os sentidos de se estudar em um país estrangeiro, sobre o funcionamento do sistema de cooperação entre instituições de ensino superior ou se estava apenas tentando confirmar alguma expectativa coletiva em relação à nova leva de “brazucas” que atravessa, cada vez mais frequentemente, esse mar oceano que nos separa, fugindo da crise que parece não ter fim em nosso país.
Não sei, realmente, como o povo de Guimarães imagina o futuro de Portugal e da Europa, mas sei que no Brasil, tomado pela conturbação política que se arrasta desde as jornadas de Junho de 2013, o futuro não parece auspicioso. Isso deve explicar a quantidade de compatriotas que migram para Portugal.
Curiosamente, foi justo desse norte minhoto, que mais saíram portugueses para o Brasil na época da colônia e do império. Vindos também de Trás os Montes, de Beira Alta e do Douro, os nossos ancestrais portugueses embarcavam em Viana do Castelo para atravessar o mar e buscar, no Brasil, o futuro que não enxergavam em uma terra superpovoada e em constante crise agrária causada pelo injusto sistema de divisão das heranças que remonta ao direito consuetudinário germânico.
Me lembro de ter lido, anos atrás, nas páginas do finado Jornal de Hoje (impresso que saía toda a tarde em Natal, e com o qual tive a honra de colaborar com artigos semanais por quase uma década) que um antropólogo português (não me recordo o nome, infelizmente) baixou pelo nosso estado para pesquisar sobre a festa de São João no Nordeste.
Segundo a matéria, o pesquisador afirmava que boa parte das tradições da festa de São João nordestina teriam vindo do norte de Portugal, especialmente de Trás os Montes, pelo Minho.
Certamente os portugueses de cá seriam bem-vindos em nossos arraiais de São João, no mês de junho. Mas será que nós, brasileiros, teríamos algum lugar no arraiá medieval de Guimarães, ao pé do castelo desse rei que, um dia, sonhou um Portugal galego e cristão?