Nascido em Santana do Matos e criado em Martins, com raízes familiares nesta cidade do alto sertão, considero-me um sertanejo, um completo sertanejo, mesmo sendo vivente de Natal há longos anos. Não seria, pois, de admirar que eu apreciasse a literatura de cordel.
Mas, confesso, não morro de amores por ela. Na verdade, gosto e muito da poesia simples e rústica dos antigos cantadores; daqueles que o mestre Câmara Cascudo estudou em seu livro “Vaqueiros e Cantadores”. Um Inácio da Catingueira, um Leandro Gomes de Barros, um João Martins de Ataíde.
Quando menino, em Martins, eu comprava, na feira, folhetos desses menestréis sertanejos. Não gosto é desse falso cordel atual, feito por poetas medíocres, de cidade grande, sem vivência no sertão.
Dia desses, remexendo nos meus “alfarrábios”, encontrei o recorte de um artigo que incluí na primeira edição do meu livro “Salvados”, mas que retirei das edições posteriores, intitulado “As Enchentes do Rio Mossoró em Folheto de Cordel”. Transcrevo-o a seguir.
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“Meu Nordeste brasileiro
És palco de tantas cenas.
O tempo é qual palhaço
Que representa centenas
De fenômenos aberrantes
Coisas grandes e pequenas”
Assim começa o primeiro folheto de cordel a usar como tema a cheia do rio Mossoró, em 1967. Seu título: “A Cheia do Rio Mossoró e o Sofrimento do Povo”. Autor: Antônio Lucena. Trata-se de um exemplar típico da literatura de cordel: cinco folhas dentro da capa cor-de-rosa, com a gravura de um homem empurrando um arado.
Esta cena, diga-se de passagem, não tem muito a ver com o texto. Há outra ilustração na contracapa: o clichê de um vereador local ao lado de encomiosa legenda, apregoando “seu trabalho incessante pelo flagelo dos desabrigados” … Abaixo desta, outra, também sobre vereador local: “Sacrificou sua vida na virada da canoa”.
Ambos os edis estão citados de mistura com outros heróis, tais como o Prefeito, o Bispo e o Juiz de Direito. Antônio Lucena, o autor, revela-se um apologista nato. Mas, o que importa é que ele, às vezes, tem graça em sua poesia. Como, por exemplo, nestes versos, em que fala sobre algumas causas da enchente:
“Diversos açudes pequenos
Arrombaram de uma vez.
O açude de Lucrécia
Sangra desde o dia seis.
Açude Apanha Peixe
Sangra faz mais de mês”
Mais adiante, referindo-se ao desespero da gente desabrigada é de uma simplicidade tocante:
“Umas mil e tantas famílias
Ficaram desabrigadas
Vendo as suas casinhas
Com as paredes molhadas
E outras querendo cair
Com as paredes rachadas”
Curiosamente, a falta de meios de expressão funciona como poesia.
Sobre o episódio de inundação da tradicional churrascaria, que se situava às margens do rio, quase dentro, assim, disse Antônio Lucena:
“Churrascaria “O Sujeito”
De Boanerges Perdigão
Entrou água na cozinha
Entrou água no salão
Entrou água na farinha
Entrou água no feijão.”
Notar aí um detalhe, aliás, comuns à poesia de cordel: a preocupação em pormenorizar o relato.
Da churrascaria as águas avançaram pelo centro da cidade, até concederam entrevista….
“Saiu fazendo visita
Ao comércio grossista
Foi ao Banco do Brasil
Fez por lá uma entrevista
Dizendo que o nosso rio
É forte e otimista”
Então, o autor conversou com as águas, e estas lhe disseram “que vivem cheias de mágoas”. Ele termina dando conselho:
“Então façam suas casas
Sem ser no leito do rio”.
E faz o rio falar:
“Não explorem minhas margens
Em tempo seco de estio
Relembrem os invernos fortes
Os meses de chuva e frio”.
Vários aspectos, além dos já referidos, podem ser detectados nesse despretensioso cordel, como, por exemplo, a procura das rimas a todo custo, e certo ar “ingênuo”, deixando bem evidente, mas uma vez, o parentesco da poesia popular com a arte naif.
É claro que Antônio Lucena não alcança, como cordelista, o alto patamar de um Antônio Francisco, de um Crispiniano Neto, mas, afinal, dá o seu recado.
1 Comment
Não é desfazendo nem desmerecendo o grande poeta, mas aonde fica “RENATO CALDADAS DE MOSORÓ?”