O importante poeta russo Vladimir Maiakovski proferiu em seu poema “A Guerra e o Mundo”, que cada país deveria deixar para o homem do futuro o que tem de melhor. No caso da Rússia, segundo Maiakovski, o legado maior seria a poesia. O poeta ressaltava como o Ocidente admira a arte russa, dentre tantas modalidades, como o balé clássico, o teatro, o romance e a música, mas a poesia seria a maior de todas as artes russas.
Trazendo, ou melhor, adaptando o belo pensamento de Maiakovski para a nossa realidade, eu diria que, em se tratando de literatura, se o Rio Grande do Norte tivesse uma espécie de painel onde pudesse expor seus grandes escritores para o homem do futuro, com certeza o ensaísta e poeta Anchieta Fernandes estaria incluso nele.
José de Anchieta Fernandes Pimenta nasceu em Caraúbas, no dia 9 de junho de 1939. Chegou à capital do Rio Grande do Norte no início dos anos 60 e, em meados da década, juntamente com Nei Leandro de Castro, Sanderson Negreiros, Jarbas Martins, Dailor Varela e Falves Silva, já participava ativamente do movimento do Poema Processo com a fundação do grupo “DÉS”.
O primeiro trabalho impresso de Anchieta Fernandes foi a publicação do poema “Harpa Eólia”, versos líricos sobre a carnaubeira, publicado em 1960, numa coluna do jornal Tribuna do Norte intitulada “Poesia do Leitor”.
Com seu irmão e também poeta João Charlier, participou da I Exposição de Poesia Ilustrada, organizada pela Secretaria de Educação da Prefeitura de Natal, na Galeria de Arte da Prefeitura, em outubro de 1963. Com o soneto “Elegia de Pedro Teixeira”, poema de caráter político, lamentou o violento assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira, da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba, assassinado em 1962, a mando dos coronéis latifundiários. Em visita à referida exposição, Rômulo Wanderley leu o poema de Anchieta ilustrado para a exibição por Newton Navarro.
Dai Rômulo incluiu Anchieta, Charlier e outros poetas no “Panorama da Poesia Norte-Rio-Grandense”, em 1965, porém, curiosamente o poema de Anchieta selecionado foi, “Canção Para Maria”, espécie de poema lírico à moda do romantismo Sobre a sua participação no movimento do poema/processo ele próprio nos esclarece em entrevista constante do livro “Impressões Digitais – Escritores Potiguares Contemporâneos V. II”, Cja Edições, 2014.
DA POESIA CONCRETA AO POEMA PROCESSO
“No histórico da minha presença na vanguarda do Rio Grande do Norte, tem-se que começar com a poesia concreta, pois o poema/processo veio depois. Em Caraúbas, eu recebia a revista “Leitura”, que o meu irmão Charlier, que viera morar em Natal antes da família chegar, ele vindo para continuar os estudos e trabalhar, mandava para mim. Era uma revista de literatura moderna, dirigida por Barbosa Melo; lendo-a, fui compreendendo que Castro Alves, mesmo com seu humanismo antiescravista, já estava superado. Chegando a Natal com o resto da família, em 1960, vivenciei primeiro a amizade com pessoas que eram jovens também, ampliando o conhecimento da literatura moderna com Dailor Varela, Moacy Cirne e Ribamar Gurgel, meu primo. Eles eram estudantes do Marista e do Colégio Municipal de Natal. Moacy ganhara um prêmio nacional do “Jornal de Letras”, com um ensaio sobre Mário de Andrade. Em 1966, ele foi ao Rio de Janeiro receber este prêmio. Voltou a Natal com um farto material sobre poesia concreta, livros, revistas e jornais, e até poemas avulsos em forma de objetos. Mostrou-nos este material e nos convocou, e a outros intelectuais jovens, para uma reunião no antigo restaurante A Palhoça, vizinho ao Cinema Rio Grande. A reunião começou com esta proposta de Moacy: “Que tal fazermos uma revolução na literatura norte-riograndense?” Sem saber o que era, eu perguntei: “mas que revolução é essa?” Moacy disse: “Nós não podemos viver estagnados na admiração por Carlos Drummond e Manuel Bandeira”. Então explicou do que se tratava.
Em 1966, estava-se comemorando os 10 anos de lançamento da poesia concreta em São Paulo , pelos irmãos Campos, Haroldo e Augusto e Décio Pignatari. Moacy perguntou: “Quem aqui já fez poesia concreta?” Eu, que tinha visto e lido na revista “O Cruzeiro”, nos anos 50, a reportagem “O Rock-and-roll da Poesia”, sobre a poesia concreta, e que logo em seguida tinha tentado fazer alguns poemas naquela linha, disse a Moacy que eu tinha alguma coisa para mostrar a ele e ele dizer se era poesia concreta. Alguns dias depois, mostrei a ele e ele disse que era, sim, poesia concreta. Portanto, o meu poema “Marinha Concreta” fez parte da I Exposição de Poesia Concreta de Natal – Explo 1, que o nosso Grupo Dés, formado com este nome para homenagear o poema vanguardístico de Mallarmé “Um Coup de Dés”, mostrou, na Galeria de Arte do Município, na Praça André de Albuquerque, a partir do dia 05 de dezembro de 1966. O meu poema fez parte também do livrinho “Poesia Concreta Dez Anos”, que o então prefeito de Natal, Agnelo Alves, mandou publicar, como o nº 2 dos “Cadernos de Cultura”.
Na exposição, o Grupo Dés lançou o manifesto “Por Uma Poesia Revolucionária, Formal e Tematicamente”, assinado por mim, Dailor Varela, Fernando Pimenta, Jarbas Martins, João Charlier, Juliano Siqueira, Moacy Cirne e Ribamar Gurgel. Depois da exposição, houve algumas palestras em escolas, na Casa do Estudante, na Faculdade de Sociologia, no Restaurante Universitário. Explicávamos o que era poesia concreta, e tentávamos aliciar novos poetas ao movimento. Isso fizemos durante boa parte de 1967. Mas acontece que até o fim do referido ano, houve uma conscientização (inclusive através de correspondência com Moacy – que passara a morar no Rio de Janeiro no começo de 1967) de que a realidade dos anos 60, tecnológica e poeticamente, era diferente dos anos 50 vivenciados pela poesia concreta. Esta trazia experimentos com a palavra e com o seu espaço. Apesar dessa inovação, ela se encerrava na imobilidade da estrutura da palavra em si. Nós do Grupo Dés (aliás, já abandonando este nome) buscávamos algo novo, e começamos a divulgar uma nova teoria, muito baseada na obra de Wlademir Dias Pino, onde cada poema é sempre aberto a etapas sucessivas, a versões, movimentando-se da palavra às puras linhas geométricas e grafismos. Tomou corpo, então, o movimento Poema/Processo, apresentado ao público na Exposição Nacional de Poemas Processo, aberta a 10 de dezembro de 1967. Exposição simultânea Natal (no prédio do Museu de Arte e História do Rio Grande do Norte, o Sobradinho, hoje Museu Café Filho) e Rio de Janeiro (no prédio da Escola Superior de Desenho Industrial).
Em Natal, a exposição também foi chamada Explo 2, e suas novidades teóricas e práticas foram divulgadas através do manifesto-programa “Poesia Nova, Processo Novo: 8 pontos”, assinado por mim, Dailor Varela, Falves Silva, Fernando Pimenta, Frederico Marcos, Marcos Silva, Moacy Cirne, Nei Leandro de Castro, Ribamar Gurgel e Sanderson Negreiros. É importante dizer que o nosso objetivo, com o Poema/Processo, não foi de lutar contra a palavra em si, e sim de trazer a dinâmica da palavra, de desentravá-la da imobilidade aural e encontrá-la junto a outros objetos, no desencadeamento de novos processos. Contra a imobilidade das estruturas, linguísticas ou político-sociais, pela invenção de novos processos.”
IMPRESSOS E POESIAS
No final dos anos 70 Anchieta Fernandes foi nomeado como repórter/pesquisador do Departamento Estadual de Imprensa, escreveu matérias para o jornal “A República”, onde inclusive criou a coluna “Leituras & Pesquisas”. Exerceu ainda a função de Supervisor de Redação do suplemento “Nós, do RN”, tendo se aposentado recentemente.
Anchieta fundou os jornais “O Popular” (1953), “O Juvenil” (1955), “Juventude” (1960) e “Lolita” (1987-1990). Além do jornal “A República”, manteve colunas também nos jornais natalenses “Prisma”, “Tribuna do Norte”, “Diário de Natal/O Poti”, “Jornalzinho do Sebo Vermelho” e “O Canguleiro”; teve trabalhos incluídos em várias antologias nacionais e internacionais. É citado em ensaios de livros de Manoel Onofre Júnior, (Salvados) Tarcísio Gurgel, (Informação da Literatura Potiguar), integrou o livro/ensaio “Além do Nome”, de Marize Castro, e a nossa principal antologia poética, organizada por Assis Brasil, “A Poesia Norte-rio-grandense no Século XX” ( 1998).
Anchieta participou de exposições de poemas visuais, nacionais e internacionais, destacando-se uma “Multimídia Internacional”, ocorrida em Natal, 1983..A plaqueta “Desenhistas Potiguares Caricatura e Quadrinhos”, foi publicada como Vol. 1 da Coleção Informação, das Edições SMEC – Secretaria Municipal de Educação e Cultura da Prefeitura de Natal, e também patrocinada pelas Organizações Walter Pereira (ex-Livraria Universitária), 1973. Anchieta fez parte do Grupehq, (Grupo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos), após a I Exposição norte-riograndense de Quadrinhos, que fora organizada pelo desenhista Emanoel Amaral, e fora aberta ao público de 15 a 22 de maio de 1971, na Biblioteca Pública Câmara Cascudo. Crítico e teórico dos quadrinhos, quando o Grupehq lançou, no jornal matutino natalense O Poti, a o1 de agosto de 1971, o suplemento “Quadrinhos”, Anchieta passou a colaborar sempre, publicando no suplemento artigos sobre o tema.
Devemos destacar a polivalência do intelectual que também além de poeta é jornalista, contista/cronista bissexto, crítico literário e cinematográfico, publicou diversos livros em vários gêneros, destacando-se no ensaio e na pesquisa. “Por Uma Vanguarda Nordestina” (1976), “Femina Infantis” (1987). “Écran Natalense, Capítulos da História do Cinema em Natal” (1992), (este livro virou uma espécie de best-seller local, e foi inclusive adotado, durante um certo período, pelo curso de comunicação da Universidade Potiguar).
O escritor caraubense publicou ainda “Poema/Processo: Perguntas e Respostas” (1992), “Poliantéia, Homenagem Póstuma a Reinaldo Fernandes Pimenta Filho” (1996), “História da Imprensa Oficial do Rio Grande do Norte” (2006). Anchieta recebeu em 2005 o Troféu O Poti (prêmio cultural do Diário de Natal) e em 2008, recebeu o Prêmio Berilo Wanderley, criado pelo Festival de Cinema de Natal. Vale dizer também que participou ativamente da elaboração e pesquisa do livro “Antilogia Poética Potiguar anos 70/80” de J. Medeiros, além de fazer o ensaio de abertura da obra.
Anchieta Fernandes está incluso no livro “A Poesia e o Poema do Rio Grande do Norte” de Moacy Cirne. Além de fazer parte de estudos de dissertações e teses no mundo todo sobre o movimento vanguardista, consta em livros como “Seven Faces: Brazilian Poetry Since Modernism” de Charles A. Perrone, publicado em Londres, 1996; “Flash” de Oscar Kellner Neto, lançado em Minas Gerais em 2010, “Conceptualism in Latin American Art: Didactics of Liberation” de Luis Camnitzer, publicado no Texas, em 2007.
QUADRINHOS
No inicio dos anos 70, juntamente com Moacy Cirne, Anchieta engaja-se no movimento para teorizar os quadrinhos, e em 1976 publica um livro dos mais importantes para a nossa literatura, “Por uma Vanguarda Nordestina”. Sobre esses assunto ele discorreu na entrevista que nos concedeu no livro “Impressões Digitais – Escritores Potiguares Contemporâneos”.
“O “Por Uma Vanguarda Nordestina”, pode-se dizer que foi o meu primeiro livro publicado, se se atender à definição de “livro” pela UNESCO: “qualquer número de páginas superiores a oitenta, devidamente costuradas.” Mas talvez este aspecto formal quantitativo não seja tão importante. “Por Uma Vanguarda Nordestina” é de 1976, e em 1973 eu já havia publicado “Desenhistas Potiguares Caricatura e Quadrinhos”, um livrinho de poucas páginas, que no entanto contém a minha informação sobre os nossos desenhistas (desde o pioneiro Poti) que não desmerece o seu lugar em qualquer biblioteca, por ser útil a qualquer pesquisador deste tipo de arte. O título “Por Uma Vanguarda Nordestina” não queria dizer que existia uma vanguarda em todo o Nordeste. O título não afirma, e sim trabalha por. Eram minhas propostas de como o Nordeste deveria, mais do que nunca, estar pronto a se abrir à vanguarda. Uma vanguarda socialmente necessária ao momento histórico, de evolução do repertório tecnológico e cultural que estava chegando à região. Afinal, 1976 foi o ano de lançamento da revista de quadrinhos natalense Maturi, um marco do quadrinho brasileiro, com colaborações inclusive de Henfil; e também o ano em que se pré-inaugurava, em Camaçari, na Bahia, a Oxiteno Nordeste S.A., fábrica de importantes matérias-primas como poliéster, plásticos, detergentes etc. Aliás, na Literatura, o Nordeste tinha, por incrível que pareça, uma tradição de vanguarda em alguns nomes isolados, desde o maranhense Sousândrade dando soluções radicais ao problema da linguagem, ao natalense Jorge Fernandes grafando a palavra “rede” na forma do próprio objeto, antecipando recursos da poesia concreta. Alguns grupos em outros estados do Nordeste, aderiram ao movimento de Natal com o poema/processo, como, por exemplo, um grupo de Campina Grande (José Nêumanne Pinto – atualmente, comentarista político no noticiário do SBT – e Regina Coeli) e um de Recife (Celso Marconi, José Cláudio, Ivan Maurício, Paulo Bruscky etc.)”.
Em 2011, Anchieta Fernandes publicou “Ler Quadrinhos Reler Quadrinhos RN”. Neste livro três trabalhos fundamentais para a reflexão sobre as histórias em quadrinhos no Rio Grande do Norte: “Desenhistas potiguares”, de 1973, ensaio publicado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Natal; “Do Pererê aos Quadrinhos norte-rio-grandenses”, artigo publicado na Revista de Cultura Vozes, de Petrópolis, em 1972; e o artigo-ensaio “Literatura e Quadrinhos – do verbal ao iconográfico”, também publicado na mesma revista em 1976. Ao lado de Moacy Cirne, Anchieta Fernandes é dos estudiosos mais apaixonados de literatura em quadrinhos do Brasil.
Mais recentemente publicou “Literatura RN – Livros Selecionados” (Sebo Vermelho Edições). Sobre este livro, uma coletânea de textos publicados pelo autor nos anos 90, já tivemos oportunidade de tecer algumas considerações no livro “Os Grãos – Ensaios sobre literatura Potiguar Contemporânea” (2016). Nos últimos anos, Anchieta Fernandes é um dos escritores do Rio Grande do Norte, ao lado de Diva Cunha, Tarcísio Gurgel e Manoel Onofre Jr., que mais têm contribuído para valorização e divulgação da nossa literatura. A sua coluna “Literatura RN – Livros Selecionados”, que dá título ao livro, originalmente publicada no Jornalzinho do Sebo Vermelho, foi de grande relevância para promover e divulgar a produção literária local na década de 90. As resenhas de Anchieta são estruturalmente bem elaboradas, constituídas e alicerçadas no profundo conhecimento que ele tem de literatura e cultura potiguar. É evidente a boa intenção do autor em valorizar o que é nosso, o que é da terra. Vale ressaltar que o seu livro não é uma antologia, mas sim uma espécie de panorama do que foi produzido em nossa cena literária em meados e no final do século passado.
Destacamos na obra literária de Anchieta, além de seus textos críticos, os seus poemas, sobretudo os de vanguarda, seus estudos e pesquisas sobre cinema e sobre a imprensa potiguar. Sobre “Por uma Vanguarda Nordestina”, destacamos o seu caráter ensaístico da vanguarda nordestina, destacando a potiguar. Dos muitos experimentos que ele fez com a palavra, sobressai o seu poema, talvez o mais famoso, “Olho”, estudado e divulgado internacionalmente. Basta dizer que, recentemente, num Campus da IFRN, lançou-se o livro “Olho por Olho”, uma realização dos alunos do segundo período do curso de Produção Cultural. O livro é composto por poemas visuais inspirados no seu poema mais conhecido. Muitos dos poemas/processo de Anchieta Fernandes estão espalhados no Brasil e no mundo, seja em antologias, seja em livros didáticos, em revistas de vanguarda internacionais também em livros e suplementos culturais do Rio Grande do Norte.
Anchieta Fernandes é um orgulho nosso!