Pelo que fui salvo

fui salvo literatura por joão queirós

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

Comecei a ler muito cedo, pelo que fui salvo. A coordenação motora pouco me servia para manter meu corpo em movimento e já conseguia juntar as primeiras letras que desaguavam em sílabas para formarem imensas poças de palavras. Essas poças um dia se transformariam em rios caudalosos de um idioma que me serviria de alimento.

Eu andava pela rua arrastado pelo braço porque me demorava tentando ler as placas das lojas pela cidade. Gostava de como as letras se abraçavam para dar razão aos prédios sob elas. Subia e descia a Rua João Pessoa, onde se concentravam quase todas as lojas de Currais Novos, enfileirando as palavras lentamente em minha boca, porque gostava de ler e dizê-las em voz alta, como se pronunciá-las fosse uma maneira de dar-lhes um corpo, uma musculatura possível de toque.

Mais do que o desafio de juntar as letras intermináveis de “panificadora”, por exemplo, eu gostava das palavras desconhecidas, pois elas me permitiam preenchê-las com tudo o que minha imaginação permitisse. Eu lia a palavra “buffet” numa placa e me dispunha a imaginar possibilidades para ela: a luta corporal, a carne e o sangue em excesso como em um açougue, fadas que farfalhavam asas e magia. As palavras cujos significados eu não sabia eram minhas de todo para que eu desse a elas o destino que desejasse, como Adão deve ter feito durante o primeiro dia, apontando e dando nomes inesperados às coisas como sua imaginação permitia.

Minha avó cursou apenas até o quarto ano primário, sem terminá-lo, muito, muito tempo atrás. Escrevia pouco e lia de maneira claudicante, mas me ensinou algumas das minhas palavras favoritas, como “tigre” e “helicóptero”, as quais achava dificílimas, desafiadoras.

Ainda bem pequeno, tive vizinhos que me ofereciam um deslumbramento diante de palavras improváveis pertencentes a eles, como uma espécie de dialeto familiar e hermético ao qual poucos tinham acesso. Eu era um desses poucos. Achava fascinante a improbabilidade de palavras como “dirijô” e outras tantas que a memória cansada deixou em algum lugar dos quintais onde brincávamos e eu parava em contemplação diante de cada novo verbete.

Foi apenas por volta dos oito anos que tive contato com um livro de verdade. Na escola, não tínhamos livros, a biblioteca era um lugar proibido para alunos e em casa também não os havia. Quando nos mudamos para uma casa deixada por um tio, encontrei uma caixa em que ficaram alguns livros, entre eles “Espumas Flutuantes”, de Castro Alves, e o Almanaque Abril de 1984, já defasado em alguns anos.

“Espumas Flutuantes” tornou-se um companheiro fiel. Eu o lia e relia todo o tempo, encantado com as palavras que desconhecia, mas que soavam tão bem se eu as dizia em voz alta. Eu não compreendia a maior parte do que lia, mas sabia que estava ali alguma espécie de magia, de invocação sobrenatural a partir da palavra. E quanto mais eu desconhecia, mais instigado estava em descobrir os segredos que aquelas combinações de palavras mantinham tão bem guardados.

Durante algum tempo que a idade já não me permite precisar, aqueles foram meus dois únicos livros. Apenas no começo de minha adolescência comecei a frequentar bibliotecas e havia tantas palavras guardadas nas estantes que me pareciam infinitas (hoje sei que eram bem modestas), que me via feliz em saber que mesmo uma vida inteira não me seria suficiente para encerrar os deslumbramentos.

Hoje, continuo apaixonado pelos estranhamentos. As palavras combinadas de maneira improvável me despertam e são essas as magias que busco quando sou eu a escrevê-las. Por isso digo sempre que sou eu quem sirvo à palavra, não ela a mim. São elas que me escolhem, embora também sejam elas que fazem silêncio sobre meu corpo. Quando estou prestes a sufocar, é uma palavra que me surge, me descobre e brota em mim. Pelo que sou salvo constantemente.


CRÉDITO DA FOTO: João Queirós

Theo Alves

Theo Alves

Theo G. Alves nasceu em dezembro de 1980, em Natal, mas cresceu em Currais Novos e é radicado em Santa Cruz, cidades do interior potiguar. Escritor e fotógrafo, publicou os livros artesanais Loa de Pedra (poesia) e A Casa Miúda (contos), além de ter participado das coletâneas Tamborete (poesia) e Triacanto: Trilogia da Dor e Outras Mazelas. Em 2009 lançou seu Pequeno Manual Prático de Coisas Inúteis (poesia e contos); em 2015, A Máquina de Avessar os Dias (poesia), ambos pela Editora Flor do Sal. Em 2018, através da Editora Moinhos, publicou Doce Azedo Amaro (poesia).

Como fotógrafo, dedica-se em especial à fotografia documental e de rua, tendo participado de exposições que discutiam relações de trabalho e a vida em comunidades das regiões Trairi e Seridó. Também ministra aulas de fotografia digital com aparelhos celulares em projetos de extensão do IFRN, onde é servidor.

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidas da semana