TERRA ESTRANGEIRA: Para cada arte, sua liberdade

Friso Beethoven

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Viena – Áustria, 23 de Abril de 2014

 Ontem foi o aniversário de Ana e resolvemos comemorar jantando em Grinzing, um bairro um pouco afastado do hotel que fica em uma parte mais alta da cidade e que tem um ambiente bem agradável, cheio de restaurantes onde se pode comer comida austríaca e ouvir um pouco de música.

Não sei se foi o vinho, a música ou o clima romântico do lugar, mas o fato é que perdemos o último ônibus e passamos um aperreio danado, já quase de madrugada, num frio de dez graus, andando pelas ruas do bairro em busca de um táxi que nos levasse de volta ao hotel.

Essa é uma lembrança muito importante para os viajantes que gostam de percorrer livremente o território desses países do norte. Os ônibus passam na hora certa. Não dá pra negociar o horário imaginando que eles vão atrasar. Geralmente só catástrofes naturais, raríssimos acidentes de trânsito ou atentados terroristas, justificam o atraso no transporte público nesses lugares obcecados pelo controle do tempo.

“Tempo”, inclusive, é um termo muito interessante, porque pode ser usado tanto no sentido cronológico (passado-presente-futuro), como aquilo que é medido no percurso do relógio (horas e minutos); ou mesmo o que é da alçada das eras, das épocas, dos períodos históricos.

Olhando nesse sentido, Viena é uma encruzilhada de épocas diversas, sobrepostas em suas ruas, esquinas e prédios.

Passamos boa parte do dia de hoje nos arredores da praça Maria Tereza, entre os museus de História da Arte e de História Natural, dois palácios monumentais, expressões da época em que esta cidade era a capital do império Austro-húngaro e rivalizava em potência com o império russo, o prussiano e o inglês.

Os dois palácios foram construídos por Francisco José. Um  deles foi dedicado a natureza e o outro a arte universal. A impressão que eu tive, indo de um museu a outro, batendo perna pelos jardins e parques públicos dos arredores, é que, se o grande signo para se decifrar em Praga é a música, a pista fundamental para descortinar o enigma de Viena é a arquitetura.

Ali, no lugar mais oriental que os povos germânicos chegaram (se a gente excluir a Prússia, de onde foram expulsos depois da guerra, vale lembrar), a arquitetura monumental das ruas amplas e dos palácios grandiosos do tempo imperial permanece lado a lado com inúmeros projetos de construção de arquitetura contemporânea, como o próprio prédio do museu Leopold, onde a gente se deparou com a maior coleção privada de quadros de Egon Schiele, além de várias obras de Klimt, Oskar Koskoscha e quase todos grandes artistas do expressionismo austríaco.

O traço limpo e geometrizado da arquitetura moderna é visto em muitos prédios que se espalham ao largo dos palácios imperiais junto a grandes construções de vidro e concreto, que eclodem pelos terrenos planos da cidade como se tentassem ferir o espaço com sua geometria aparentemente inviável, mostrando que o tempo de Viena não é apenas o tempo de sua antiga história aristocrática.

Talvez seja a influência de Otto Wagner, que marcou a vida urbana da cidade na virada do século XIX para o XX, passando por cima, sem muito pudor, das marcas de outras épocas; medievais, góticas e barrocas, para que a modernidade abrisse o seu cortejo de experimentações e ousadias arquitetônicas.

Olhando para as ruas largas, praças e parques abertos, a gente percebe que aquele imprensado das cidades históricas da Europa foi descartado em Viena, em nome de uma reforma urbana que, seguindo o que Paris havia feito na virada do século XVIII para o XIX, acabou se tornando a marca registrada das capitais imperiais europeias.

Vou confessar aqui uma coisa: de todas as artes, a que eu mais tenho dificuldade de compreender é a arquitetura. Isso porque, ao contrário de todas as outras artes que parecem ainda manter um afastamento entre o sujeito que experimenta e a “coisa” experimentada, no caso da arquitetura, você entra na obra.

Então, por isso, sempre achei que a arquitetura fosse verdadeiramente a mãe da instalação e da performance. Jogar a vida pra dentro da arte e a arte pra dentro da vida causa um curto circuito na minha cabeça de escritor, de modo que eu não sei mais se eu estou produzindo a obra ou sendo produzido por ela.

É verdade… eu já fui, em algumas fases da minha trajetória, capturado pelo meu texto a ponto de não conseguir saber ao certo o que era minha literatura e o que era minha vida. Isso, que parece extremamente sedutor quando você tem a idade de Rimbaud, é fatal quando você começa a se aproximar da idade de Jorge Luís Borges (um escritor que parece já ter nascido velho).

Por isso agora, quando eu chego aos 40, depois de muito lutar para tomar o controle do meu texto, me sinto meio desnorteado quando tenho de entrar em prédios como o da Secessão, por exemplo, nesta Viena que um dia foi de Freud, Wittgenstein e Klimt.

O prédio, que fica a menos de 600 metros dos dois monumentais museus imperiais, erguidos por Francisco José, imperador da Áustria e da Hungria, não é apenas uma ousada obra de arquitetura moderna, mas também um manifesto político.

Um artefato arquitetônico de combate estético contra um passado imperial que, na virada do século XIX para o XX, já dava sinais de esgotamento.

Inaugurado em 26 de Março de 1898, o prédio da Secessão, pejorativamente chamado pelos defensores de estilos mais clássicos de “prédio do repolho dourado” (em função de sua cúpula que lembra em muito o vegetal mais conhecido da culinária alemã), foi financiado em parte com o dinheiro de Karl Wittgenstein, o pai do filósofo que eu havia estudado na graduação, especialização e mestrado.

Proprietário de siderúrgicas por todo império e dono de uma das maiores fortunas de Viena, Karl Wittgenstein era um grande financiador e apreciador de arte. Ele jogou uma grana arretada na mão de Gustav Klimt, Kulo Moser, Joseph Hoffman e Alfred Roller para que os artistas pudessem lançar a pedra inaugural de sua galeria.

O prédio da Secessão acabou se tornando o centro de disseminação de um estilo que era chamado na Alemanha de Jugendstill e na França de Art-Noveau.

A ideia era que o lugar fosse uma espécie de “templo” para uma “religião da arte” que substituiria, numa clara influência das primeiras leituras que os jovens alemães estavam fazendo da obra de Nietzsche, a moralidade cristã e burguesa por um “culto a beleza”.

Não é a toa que em 1902 o prédio tenha sido escolhido para a primeira exposição pública da estátua de Beethoven, esculpida por Max Klinger.

Feita a partir de mármore grego, alabastro do Tirol, marfim africano e bronze, a escultura representava Beethoven como um ser semidivino, em uma posição em que tradicionalmente os antigos representavam o Zeus olímpico.

No clima do evento, Klimt e vários outros artistas plásticos renovaram o interior do prédio, criando um ambiente todo preparado para inauguração da estátua, com música (dirigida por ninguém menos que Gustav Mahler), dança, poesia e… lógico, pintura.

É ai que entra Klimt com o intuito de dar um “toquezinho de coadjuvante” para o evento principal (a exposição da obra de Klinger). O pintor, cujo pai era gravador de profissão e descendente de agricultores da Boêmia, resolveu decorar as paredes da sala em que a estátua seria exposta com um “friso” de estuque, onde seria feito uma pintura intercalada com folhas de ouro e prata, madrepérola e vidro espelhado.

A obra, chamada de “Friso Beethoven”, se destinava a ser apenas um ornamento decorativo para uma sala. Algo que deveria ser descartado após a exposição. Apesar disso, como era de se esperar, acabou gerando mais repercussão do que a própria estátua que deveria ser o centro das atenções.

O escândalo correu a cidade com os críticos de arte mais conservadores brandando nos jornais e nas revistas especializadas contra a “falta de pudor” com que as figuras femininas haviam sido retratadas, tomando tudo aquilo como uma ofensa pessoal contra o próprio Imperador e um atentado contra o bom gosto estético.

Para a sorte de quem aprendeu a amar a arte, o friso não foi destruído de imediato, como havia sido planejado. Em 1915, Erich Lederer, um judeu colecionador de arte, adquiriu a obra para sua coleção particular. Em 1938, o friso acabou sendo confiscado pelos nazistas que estavam imbuídos em uma cruzada contra as “formas degeneradas de arte moderna”.

O material só foi devolvido a Lederer após a guerra, e ficou nas mãos da família até 1972, quando o governo austríaco,  livre da paranoia conservadora nazista, adquiriu a obra pelo valor equivalente hoje em dia a 1,1 milhão de euros.

O friso passou onze anos sendo restaurado até que em 1986 voltou a seu lugar de origem no prédio da Secessão, para que gente de todo mundo, inclusive nós, nativos da ensolarada e distante taba de Poty, erguida entre o rio e o mar e escondida do mundo por um sudário de areia fina, pudessem contempla-lo.

Quando eu e Ana entramos, 112 anos depois da exposição inaugural, na sala onde o friso Beethoven se encontra, tive um alumbramento.

Quase como se fosse uma miração ou um daqueles inconvenientes flash backs de ácido que vez ou outra assaltam os velhos viajantes; psiconautas da inesgotável  farmácia de Pacha Mama.  Naquela sala, tive a nítida sensação de que todos os tempos daquele século que passou podiam se cruzar.

Diante dos espaços vazios na parede, que marcavam a ausência de partes do friso, perdidas ou destruídas pelos nazistas, o que sobrou das quatro grandes cenas da pintura de Klimt ainda pareciam brilhar, mesmo diante da luz ténue que é usual nessas salas de exposição.

A humanidade sofredora em busca do auxilio de um cavaleiro dourado que a salve da tormenta; as forças hostis das regiões infernais, representadas por um sombrio e monstruoso macaco, o gigante Typheus, ao lado de suas filhas: doença, loucura, morte, luxuria, volúpia e excesso; as figuras do reino da arte, em sua superação dessas forças hostis e finalmente… um beijo para o mundo. Uma explosão de amarelo e dourado (uma das especialidades de Klimt) que funciona como uma contrapartida pictográfica da harmonia musical do coral que canta a Ode a Alegria, no último movimento da nona sinfonia de Beethoven.

Sinceramente eu não sei bem o que a arquitetura faz com a gente, mas sei que estar dentro daquela sala, diante dos fragmentos daquele friso, que sobreviveram à fúria nazista em um século tão conturbado quanto o que passou, me colocou fora do mundo por um bom tempo.

Quando saímos do prédio em busca de algo para comer e assistir o jogo da ida do Bayer contra o Real Madrid pela semifinal da Champions, fiquei ainda uns instantes diante da fachada, em pé, na escadaria que leva ao pórtico de entrada daquele templo extravagante, erguido para homenagear todas as potências apolíneas que atravessam os tempos da humanidade e cruzam suas eras espalhando o narcótico da beleza.

Foi então que notei, gravado na fachada, o lema dos fundadores daquele movimento, como uma lembrança definitiva, uma lição essencial dos artistas do passado, não apenas para mim, mas para todo um futuro que se descortina diante desse novo século que se inicia.

“Para cada época sua arte, para cada arte, sua liberdade”.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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