Maria de Souza, eis o nome de batismo de Joana. A menina de seu Cícero Irinco de Souza e de dona Francisca Ana da Costa. Nascida no dia 29 de maio de 1927. A única filha mulher entre os cinco filhos do casal. De São José de Campestre, interior do estado do Rio Grande do Norte. Uma cidadezinha que se desmembrou de Nova Cruz em 23 de dezembro de 1948, pela Lei número 146, criado por um projeto de lei de autoria do Major Theodorico Bezerra. Ou seja, quando Joana nasceu, ainda era Nova Cruz.
A população atual da cidade é de 12.879 habitantes e sua área territorial é de 341.115 km². As principais atividades são da agricultura, da pecuária e da avicultura, contando ainda com a forte produção leiteira e o artesanato que se encontra em forte expansão. Tendo São José como padroeiro protetor.
E foi nessa cidadezinha que Joana passou maior parte de sua juventude, trabalhando de sol a sol no roçado, batalhando o sustento da família. Enquanto a maioria das mocinhas de sua idade se casavam, ela continuava a batalhar junto aos país e aos irmãos. Desde sempre trouxe consigo o espírito empático, altruísta e coletivo. Que se revelava a cada gesto, a cada palavra. Uma moça gentil e prestativa. Dentro de uma realidade insípida, difícil, Joana se contrapunha com sua afabilidade e generosidade.
Os anos foram passando, e Joana continuava no caritó[1], já tinha mais de 30 anos, uma “moça velha”, que ainda não havia se casado. Imagine você a quantidade de comentários que ela deve ter ouvido a respeito. Mas o destino colocou o meu bisavô, João Anselmo da Silva, um viúvo, pai de oito filhos, em sua vida. Com quem ele veio a se casar. Mudou-se para Santa Cruz, outra cidade do interior do Rio Grande do Norte. Tiveram quatro filhos, porém apenas um sobreviveu, José Anselmo Sobrinho. Foi dessa união que Joana tornou-se “Vó Preta”, minha bisavó e de mais de dezenas de bisnetos. Acrescentando o “Silva” ao seu nome, Maria de Souza Silva.
Parece que o destino gostava da ideia de Joana ser uma mulher que por si só bastava. Pois tornou-se viúva cedo, e continuou criando seu filho José, em Santa Cruz, apesar de todas as dificuldades, até ele se torna um homem adulto e vir morar em Natal, a capital do estado, na casa de sua irmã Maria, minha avó. Que posteriormente se casaria e traria Joana para morar consigo. E que felicidade ele ter feito esse convite, pois isso me permitiu conhecer e conviver uma parte da minha vida, diariamente, com minha Vó Preta, a quem todos chamam de Joana.
A partir de agora descreverei Joana através da memória afetiva de uma criança preta, de periferia, que observava o mundo a sua volta e conseguia extrair as pequenas sutilezas. Vó Preta trazia consigo sempre o seu cachimbo, um pano pendurado sobre a blusa e um par de olhos serenos. Seus cabelos curtos e ralos, sobre a pele preta que carregava toda uma ancestralidade e sabedoria. Um nariz comprido, imponente e uma boca bem delineada.
Ainda pequena, lembro que estava muito doente, com catapora, e foi através de seus cuidados com banhos de ervas, chás, que me vi curada. Enquanto minha mãe não podia dedicar-se aos cuidados, devido ao trabalho. Mas eu não fui a única a receber os cuidados de Joana, além de dar assistência aos bisnetos, ela criou três netos como filhos. Entre privações, na condição de viúva há alguns anos, no bairro Bom Pastor, na zona oeste de Natal.
Certa vez, eu me encontrava em estado de impaciência, e ela proferiu as seguintes palavras – Diane, sossega! O plantio das coisas se dá pelo tempo – confesso que naquele momento não compreendi nada do que ela queria dizer. Me faltava a maturidade, que ela já tinha conseguido em meio de tantas lutas. Entender o tempo das coisas é perceber que a vida também se constrói como um roçado. Precisamos preparar a terra para plantar, aguar para germinar, esperar nascer, crescer e, no tempo certo, colher.
E é isso que nossas velhas sábias fazem, elas preparam o chão que pisamos, germinam em nós as sementes de seus saberes, para que possamos colher no tempo certo. Para que possamos também ser terra fértil. Frutificarmos em nossas vivências e semear novas sementes. Pois a vida torna-se bela quando conseguimos enxergar o outro, quando conseguimos construir coletivamente. Quando o amor ensina mais do que a dor. Eu aprendi através dos olhos serenos de Joana o que é ser “nós” além do “eu”.
Eu também sou Joana, todas as vezes que me coloco na vida como mulher, preta, nordestina, que contrapõe a violência dos dias cultivando o afeto para os seus, para as suas, que também carregam dores diárias. Que sobrevivem a um sistema que desumaniza. Que historicamente os colocou às margens sociais. Sou joana a criar partículas de paraíso dentro do caos. Sou Joana quando empaticamente acolho e oferto meus cuidados.
No dia 26 de julho de 2020, data que se comemora o dia dos avós, ela se encantou, aos 93 anos, deixando um legado de humanidade, de amor e de afeto. Jamais esquecerei dos olhos serenos que tanto me ensinaram. Da mulher que mostrou que é possível construir o mundo através da generosidade, que é possível ser gentil numa terra de feras. Mas que nunca fujamos da luta. Assim foi, e é minha Vó Preta. A Maria que se chama Joana, e que até hoje não sabemos o porquê.
[1] Expressão popular usada no Nordeste do Brasil para a moça quando não casa. O mesmo que ¨ ficar na prateleira¨ ou ¨ficar pra titia¨.