O poder do Silêncio na narrativa cinematográfica

Sangue do Barro_geraldo-cavalcanti-2009

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

por Mary Land Brito

Incrível o quanto passa um filme em nossa cabeça quando vemos o nome de um ser querido seguido de um comunicado de morte. E quando esse afeto é roteirista de cinema, já veio junto a dúvida se as imagens que estavam vindo e a ordem dos acontecimentos eram a melhor forma de relembrar essa história e se seria assim que ele contaria.

E aí fui lembrando com muita saudade de cenas vividas na produção do documentário Sangue do Barro e com isso veio também a lembrança de amigos como Fábio DeSilva, Keila Sena e tantos outros colegas da velha guarda, mas nem tão velha assim do nosso audiovisual como Buca Dantas, Érica Lima, Alexandre Santos, Nelson Marques, Carlos Tourinho… Juntos convivemos com Geraldo como amigos e companheiros de luta pelo crescimento do cinema potiguar.

Foi como companheiro de trabalho do setor de comunicação da Fundação José Augusto em 2004 que Geraldo Cavalcanti entrou em minha vida e a costurou desde então, sendo a gente, hoje, colegas de Instituto Federal, eu do RN, ele do Ceará. Ele, que sempre foi um batalhador da interiorização da produção cinematográfica, estava desenvolvendo projetos lindos de audiovisual no IF de Quichadá, Aqui no Estado, no início dos anos 2000, ele rodou várias cidades com o projeto da FJA Nós na Tela ensinando e produzindo curta metragem.

E para honrar meu amigo, cocriador de histórias, colega de Instituto Federal, companheiro de luta educacional, social e política, que farei esse relato apoiando-me na linguagem do cinema, a arte que Geraldo foi um dos responsáveis em trazer para a minha vida real e sair do universo dos sonhos.

Pré-produção

Uma das formas de se fazer um Roteiro Cinematográfico é a estrutura de três atos propostas por autores como Syd Field. Na primeira parte do filme, mais ou menos 25% dele, apresentamos as personagens principais e o ambiente em que a história acontece; e aí vem um ponto de virada, algo acontece que tira o protagonista dessa zona de conforto; em cerca de 50% do filme a trama se desenvolve e aí vem todas as lutas em que protagonistas se esforçam para conseguir o que almejam, ora ganhando, ora perdendo pra poder deixar ainda mais verossímil a história. Segue-se outro ponto de virada, dessa vez com capacidade de resolver a história, ganhar ou perder. Clímax. Em seguida inicia-se o ato 3, onde vemos as consequências desse acontecimento principal do filme. Acaba os outros 25% da obra e aí… The end.

Simples assim fazer um filme, né? Só colocar isso em prática. Só que não.

Em uma madrugada de escrita de roteiro na casa de Gerald (assim eu  chamava Geraldo Cavalcanti) em Santa Rita, ele me disse: o que a gente não vê na tela e que pertence a vida da personagem, sua história pregressa, o que não aparece nesses atos é o mais bonito e forte dos personagens.

Aprendi com Gerald que o que deixamos de fora é tão importante quanto o que incluímos no roteiro. A ausência é deveras significativa e deve fazer-se presente em todo o filme. Prever os passos e saber tudo de uma personagem não segura a atenção do espectador. E Gerald mostrou ainda a importância de entender quem essa personagem é além do recorte que a fez ser digna de um filme e suas motivações.

Conhecendo intimamente as personas que fazem parte do roteiro, a gente consegue melhor transcrever os caminhos que podem ser trilhados de forma que personagens naturalmente passeiam entre os atos que formam o filme e você roteirista acerte o passo junto. A força propulsora da personagem deve ser sentida, e com isso ela nos levará para onde precisamos ir. Deve acontecer uma viagem nas dores e prazeres de quem retratamos, seja herói ou anti herói.

Em nosso processo criativo de escrita do roteiro de Sangue do Barro (2009), Geraldo tinha a função de mergulhar em Genildo e entender o que ocasionou um ser humano comum fazer uma chacina em sua comunidade. Eu tinha a função de olhar de fora e não deixar a personagem justificar o ato apenas pelo seu olhar. Havia muita gente envolvida, muitas dores no que ia além desse universo de Genildo. E assim, nos completamos, choramos, fomos transportes de argumentos da emoção e da razão e muitas vezes nos vimos dentro de um liquidificador de sentimentos.

Produção

Lá estávamos nós com nosso roteiro finalizado com muito trabalho e banho de mar, iniciando nossas gravações de fato, mexendo com a estrutura emocional da cidade, da equipe envolvida, dos entrevistados. Das mais de 70 pessoas que foram entrevistadas em áudio na pré-produção, escolhemos aquelas que traziam elementos essenciais à história e a faziam andar a cada novo relato.

Definimos como processo de gravação, o seguinte: Fábio se concentrava na parte técnica e eu fazia as perguntas conduzindo as entrevistas com Geraldo ao meu lado em silêncio.

Era a primeira vez que eu falava com a maioria daquelas pessoas da comunidade. Quando eu ia trabalhar com Geraldo na casa em que ele ficou morando em Santo Antonio dos Barreiros, eu ficava dentro de casa, para não criar os vínculos que Geraldo criou e tentar ver o fato de fora daquele turbilhão emocional da cidade. Este distanciamento também foi o caminho que encontramos para que as pessoas relatassem na gravação minuciosamente a história que traziam, sem esquecer os detalhes que costumam ficar de fora quando repetimos uma história pela segunda vez.

E Geraldo ali quietinho, ao meu lado, era o elo de ligação entre depoente e equipe, o referendo que dava a segurança que os personagens precisavam para estar ali relatando acontecimentos que gostariam de nunca terem vivido. Em silêncio, ele fazia muito naquele processo de gravação. Aqueles minutos eram apenas a ponta do iceberg do que pesquisador e personagens tinham vivido. E nesse silêncio de palavras, Gerald ajudava a conduzir fazendo um lindo trabalho que era o de ser vínculo e isso vai além da técnica, é empatia e humanização.

Pós-Produção

Na montagem da cena da carta em que os filhos de Genildo Ferreira leem pela primeira vez um escrito deixado pelo pai no dia dos assassinatos, há um silêncio após a leitura que foi cortado em uma das versões que fizemos em busca de chegar nos 52 minutos que o filme deveria ter e que ainda estávamos passando muito.

Quando chamamos Geraldo na produtora para analisarmos algumas versões, ele logo chamou a atenção para o corte seco que havíamos feito assim que finalizada a leitura da carta. E lá vem ele com seu argumento do silêncio em punho. E ele estava muito certo. Ainda bem que achamos outro ponto do filme para “descontar esses segundos”.

E no vazio das palavras, sentimos a dor daquela filha ao mesmo tempo que testemunhamos a realização de algo que ela desejou muito, que foi ter acesso a essa carta. E aí, lembrei também que no dia que rodamos esta cena, foi a gravação que saímos mais em silêncio, que almoçamos mais quietos, dia em que que a Van que trazia a equipe para Natal também veio mais com pensamentos do que com palavras, segundo os relatos do dia seguinte.

E para a gente que ficou em Santo Antônio, aquela foi uma noite em que nos recolhemos cedo, cada um com seus pensamentos e presenças ausentes. E foi esse silêncio que Geraldo também sentiu falta no corte que estávamos analisando. E o silêncio voltou, e o preenchimento aconteceu.

E é lembrando que Ausência e Silêncio também são presença e informação, além de elementos relevantes para se contar uma história e se fazer um filme que eu, como professora que sou, divido com vocês essa importante lição de roteirista que aprendi com meu amigo Geraldo Cavalcanti, que neste dia 31 de março de 2021 nos deixa e me fez fazer vários filmes em minha cabeça. Inclusive os que planejamos e nunca realizamos.

No filme de hoje, Gerald, eu estou sentindo falta dos seus cachinhos, do seu tamanho grande, do abraço apertado, do sorriso largo, do olhar brilhante, do otimismo e de quando fazia diversas versões do meu nome. E sim é verdade. Ausência é Presença. Seu silêncio me lembrou bem esse fato.

Redação

Redação

Obrigado pela visita!

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

2 Comments

  • Mathieu

    Lindo texto, lembrança forte e danada do nosso amigo…

    • Mary Land Brito

      Olá Mathieu! Sim…. Sua postagem acabou trazendo diversas lembranças dos nossos papos e encontros 🙂 Espero que esteja tudo bem por aí 🙂 dentro do que é possível estar bem.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidos do mês