O homem e o filme feminista: quem escreve, quem assiste e quem ganha Oscar?

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Dois filmes com protagonismo feminino, escritos e dirigidos por homens, foram os grandes ganhadores dos Oscar de 2024 e 2025. Gostaria de aproveitar a semelhança entre eles para demonstrar a visão masculina; em seguida traço uma comparação com dois filmes escritos e dirigidos por mulheres, com sucesso de público e menor sucesso na premiação.

Acredito que a partir dessa comparação veremos como os dois primeiros filmes, mesmo com protagonismo feminino e um arco de emancipação, não buscam articular um discurso feminista, como acontece nos dois filmes seguintes. Apenas isso poderia ser suficiente para inferir a razão da performance de ambos ter sido distinta (embora eu tenha a impressão de que esse foi um aspecto pouco mencionado). Assim, procuro ir mais a fundo nas crenças de base em que os filmes se ancoram, a partir da representação dos personagens homens e mulheres.

ANORA (2024) e POBRES CRIATURAS (2023).

O que Anora e Pobres Criaturas têm em comum?

Em Anora os personagens centrais são: Mikey Madison (Anora), Yura Borisov (Igor/Príncipe Encantado), Karren Karaguilan (Toros, o capanga chefe) e Vache Tovmasyan (Garnick, o segundo capanga). Na parte anterior do filme, o jovem-russo-mimado, Ivan. Em Pobres Criaturas os personagens centrais são: Emma Stone (Bella), Willem Dafoe (Baxter), Raimy Youssef (Max) e Mark Ruffalo (Duncan). Em ambos os filmes temos uma protagonista mulher e mais três homens como personagens centrais. Mas a questão não é apenas a quantidade: todos os homens são, também, inofensivos. Falemos disso com mais cuidado a seguir.

Quando os pais de Ivan enviam os capangas para buscar ele e Anora, Ivan foge e Anora é deixada sozinha com os dois capangas. Se por um lado sabemos o que poderia ter acontecido com ela, tendo em conta a probabilidade de violência machista numa situação assim; por outro lado é ótimo quando temos cenas (como essa) que fogem dessa expectativa, trazendo para o cinema mainstream uma representação diferente da masculinidade social.

A cena deve estar muito clara em sua mente: Anora resiste aos capangas, tentando fugir repetidamente, golpeando-os se necessário. Os capangas não usam força, não ficam agressivos; o máximo que o Igor/Príncipe-Encantado faz é conter Anora sem machucá-la. Quando o chefe dos capangas chega, ele é exageradamente cuidadoso/cordial com ela (assim como um vilão faz antes de demonstrar toda sua crueldade – mas essa crueldade nunca chega), dando bronca em seus capangas pelos ‘maus-tratos’. Todos os três enormes homens têm paciência e esperam Anora parar de espernear e finalmente querer ir por boa vontade, assim como os pais fazem com crianças pequenas que dão chilique quando contrariadas. Uma cena que à primeira vista poderia ser utilizada para argumentar que Anora é uma mulher forte, não precisa de muita análise para percebermos como trata-se de uma infantilização da protagonista; protagonista que, lembremos, é a única mulher com destaque.

Uma cena semelhante de embate em Pobres Criaturas seria quando Ruffalo busca por Stone, que o deixou, e grita e se descabela na calçada abaixo de sua varanda: arranca os próprios cabelos mas não faz mal a ela.

Ambas as protagonistas (de Pobres Criaturas e Anora) em dado ponto são prostitutas que, por meio da prostituição, detém poder — como se uma das profissões que mais deixa a mulher vulnerável fosse a mesma em que as mulheres são detentoras de poder: já que é uma profissão em que se vende sexo e a prostituta é o objeto de desejo. A mulher sexualmente ativa é poderosa, a mulher exerce poder por meio do sexo. Quase soa como a base de uma crença incel.  Elas, também, não correm perigo nem sofrem violência quando estão sozinhas com seus clientes.

Esses dois aspectos da trama: como os homens são retratados e como as mulheres são retratadas, elaboram uma forma segura e confortável de enxergar a realidade, especialmente para aqueles que querem ignorar que homens predam mulheres. Nos universos criados pelos dois autores, não há homens violentos e uma mulher nunca está em perigo quando sozinha com um homem.

A SUBSTÂNCIA (2024) e BARBIE (2023).

Por outro lado, temos o grande injustiçado do Oscar 2025: A Substância. O filme perdeu o prêmio de Melhor Atriz de Demi Moore, e não teve indicação de Melhor Direção para Coralie Fargeat — que definitivamente merecia. A obra apresenta uma representação dos personagens homens memorável e, possivelmente, incômoda.

Com uma direção primorosa, Fargeat utilizou maquiagem e a câmera grande angular para retratar a personagem de Dennis Quaid como uma pessoa que causa nojo. É ele, e um grupo de empresários babões, de meia-idade e grotescos que cobram a juventude, beleza e sensualidade eterna da mulher. Além da aparência e da atitude desagradável desses homens, o próprio contraste entre eles e a semi-nudez e vibe radiante de Qualley (a personagem de Demi Moore mais jovem), gera uma sensação de repulsa aos homens impossível de ignorar.

Nesse momento você poderia pensar: “Ah, mas em Barbie todos os homens são vilões, também, e foi sucesso de bilheteria e de público!”. Todos os homens são bobos em Barbie. São estereotípicos, burros, pombões. Mas o filme é uma comédia. Os homens são engraçados, não repulsivos. Ryan Gosling foi tão adorado pela sua participação no filme que foi indicado ao Oscar de Melhor Ator. Seu personagem, Ken, ainda é acolhido pela protagonista nos momentos finais do filme. Não existe, realmente, um antagonismo entre os gêneros reforçado pela narrativa. Além disso, como evidência da boa recepção do público, Gosling apresentou um número musical do filme, como Ken, durante a cerimônia do Oscar. E a Margot Robbie (Barbie)? Nem mesmo foi indicada. E, no fim das contas, o filme também não levou os Oscars (exceto o de melhor canção para Billie Eilish).

Por aqui você já deve ter notado que os dois filmes escritos e dirigidos por homens representam os homens de uma forma, e os dois filmes escritos e dirigidos por mulheres representam-os de outra forma. Isso não é uma regra. Cito um fenômeno interessante que é a filmografia de Alex Garland, diretor que vem demonstrando uma preocupação com o feminismo que, preciso pontuar, pode soar feministo em muitos pontos. Entretanto, em seu Men: Faces do Medo (2022), o diretor conseguiu transmitir de maneira visceral a sensação de medo-justificado de ser uma mulher sozinha com diversos homens.

RECEPÇÃO DO PÚBLICO

Em discussão com meu colega CD Vallada, o cineasta expressou de forma certeira: frequentemente os espectadores (crítica e público) percebem os mesmo prós e contras de um filme, o que muda é o quanto de valor o espectador dá para cada um desses aspectos; a partir disso é que a recepção é diferente, e a avaliação de um filme, portanto, nunca pode ser objetiva. E eu concordo.

Nesse mesmo sentido, não podemos inferir quais os pontos que influenciaram mais de 10 mil membros votantes do Oscar. Por exemplo: A Substância e Barbie são filmes de gênero (terror e comédia, respectivamente), e filmes de gênero tradicionalmente não são “levados a sério”. Inclusive, a estrutura de gênero influencia tanto na experiência de cada espectador, que centenas de críticas com nota baixa no letterboxd falam de maneira crítica sobre “nojo” e sobre “o final nada a ver”, dois aspectos essencialmente próprios do gênero que o filme faz parte.

Mesmo assim, quando se fala em filme feminista, eu acredito que, muito mais do que o discurso de equidade, a representação da mulher e do homem é que vai ditar como o filme será recebido pelo público. Essa é a minha teoria para explicar a vitória esmagadora de Anora no Oscar (em diversas categorias), no lugar de imaginarmos simplesmente que “a atriz mais nova ganhou das sextagenárias”.

O meu argumento é que, se acreditamos que a idade, beleza e carisma das atrizes conquistam mais espectadores na realidade patriarcal que vivemos, então será que a representação dos homens não influencia na recepção do filme pela sociedade machista?


Crédito da foto: MUBI.

Paula Pardillos

Paula Pardillos

Escritora e crítica, membra da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte. É também roteirista e diretora de cinema, com enfoque no gênero terror.

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