O caso Richard Jewell

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Vi O caso Richard Jewell (Richard Jewell – 2019), o último trabalho de Clint Eastwood. Sensação esquisita ver um filme sozinho no cinema. O caso de Richard Jewell começou e, em sala, estávamos sós: apenas eu e os meus botões e a história daquele sujeito, que Clint resgatou das entranhas da história americana contemporânea e jogou no turbilhão de uma trama cinebiográfica, familiar, cômica e trágica, anônima e pública.

Esperava que os fantasmas não aparecessem. E esperava ainda que O caso Richard Jewell fosse pelo menos próximo do último Eastwood e diferente do que vem apontando a crítica, que deseja sempre, em uma relação de amor e incompreensão, que o realizador prescinda das questões político-culturais que lhes são fundamentais, que se torne imune ou se distancie, assim, como quem troca de roupa, do seu mundo, cosmologia, imaginário, princípios.

Aliás, em relação ao cinema de Clint, a crítica se comporta como uma gangorra, ora elogiando os filmes, mas num esforço descomunal para separar o cinema da política ou de uma certa cultura republicana – e, então, as obras são incontornáveis, mas, politicamente, incorretas, ora recusando-as sob o pretexto de que sua ética está na ponta extrema do que deve ser politicamente aceitável.

Não teve jeito: os fantasmas apareceram ao longo da sessão e a crítica de cinema foi um deles. Eu sozinho ali, olhando para as imagens, prestando atenção aquele sujeito em um processo de formação e adensamento perceptivos do mundo, da vida, da lei e da ordem: autoproclamado agente da salvação pública – sob uma direção sem histeria, que elimina toda e qualquer atmosfera e encenação excedente, o que torna o desenvolvimento do personagem Richard algo mais brutal dada a inocência perigosa que conduz seus passos, comportamento, ações.

Clint Eastwood não é Costa-Gravas ou Ken Loach

É justamente com a história de Richard Jewell que Clint promove esse encontro de forma mais brilhante, talvez, desde Gran Torino (2008), em que um certo mundo republicano estava em quadro como dimensão cultural marcante e dominava as imagens. O que torna esse enlace o fator das melhores sequências que vemos em O caso Richard Jewell ou, em outros termos, o desenvolvimento de personagem mais preciso.

Aquele conjunto de encenações – dentro da encenação clinteastwoodiana –, que envolve a chegada dos agentes do FBI a casa de Richard, a passagem deste em meio aos jornalistas e o seu depoimento no escritório policial americano, vale por uma centena de obras da década. Ali, com o sistema farsesco em quadro como numa comédia de horror, Clint expõe a farsa da lei e da ordem, a ilusão de um paranóico-patético e um sistema policial degenerado.

Em O caso de Richard Jewell, o estado de coisas que o diretor coloca em cena é confundido com apologia pelos seus leitores mais à esquerda. Sinceramente, não vejo aqui qualquer tom celebrativo de uma certo republicanismo/fascismo americano que desemboca num desenho positivo de Richard. E não sei também como é possível elogiar o filme destituindo das suas dimensões políticas ou culturais. Que não se concorde, equivocadamente, é uma questão diferente de tentar olhar para as imagens destituídas dessas dimensões. Não é possível no cinema de Clint, assim como não é no de Leni Riefenstahl – goste-se ou não dos lugares que ocupam/ocuparam na História –, ainda que a arte e o absurdo sejam um todo que, nesses casos e em outros similares, torne-se impossível de ser quebrado e separado.

Não há elogio à loucura

E, ao contrário de trabalhos anteriores, Clint desenvolve aqui esse enlace sem perder o foco, pontuando o personagem, apresentando o contexto e desenrolando o drama pessoal e familiar, privado e público, com circunstâncias históricas e fílmicas que o envolvem, sem aquelas tramas secundárias como a dos irmãos que apaga pelo menos duas das cinco estrelas de As pontes de Madison (The bridges of Madison County – 1995). O foco em Jewell, na construção da sua personalidade, na sua imersão numa agencia da segurança, na ilusão de autoridade, não perde a força narrativa do início ao fim.

No primeiro bloco, da partida do game com o seu futuro advogado (a apologia as armas) à suspeita do cabeludo com uma mochila no show em Atlanta (o tipo criminoso inquestionável na cosmologia republicana de Richard), Clint desenvolve cada uma das fases da formação de Jewell rumo ao herói americano preso a um mundo doentio (o game, a sequência do tiro ao alvo, a coleção de armas sobre a cama), do autoritarismo (a batida na república de jovens em festa e as “blitz policiais” no College) e da paranoia da segurança (para garantir a lei e a ordem que, no documentário A 13ª Emenda (13th – 2016, de Ava DuVernay) tem a sua gênese e miséria registradas, do século XIX a atualidade, como um processo de regulação e encarceramento que se estende até o tempo de Richard). A progressão da construção da personalidade desse sujeito, nesse momento inicial, passa longe de tornar o último Clint Eastwood um evento de celebração a uma certa cultura republicana fascista.

Do início ao fim, não fica qualquer dúvida de que estamos diante de um paranoico, bobão, idealista (em seus próprios parâmetros), pateta ou, o que é pior, de um inocente perigoso. Se ao final esse sujeito ganha farda e distintivo não deixa de ser um sintoma de um modelo de sociedade que, em tela, Clint Eastwood registra sem disfarces. Uma sociedade com seus heróis de plásticos, enaltecidos e depois destruídos, postos em cena pela mesma mídia, eticamente, degenerada, colocada nas cordas por Eastwood n’O caso Richard Jewell sem qualquer concessão (o choro da jornalista ao final é igualmente patético, a força da nota do advogado de Richard na coletiva de imprensa empareda, sem lados, a mídia e o Estado, a chacota na sequência da oração depois do atentado não perdoa).

Se, por um lado, os casos que envolvem as táticas da jornalista que, sem pudor ou qualquer princípio, passa por cima de qualquer coisa para alcançar seus propósitos jornalísticos, são de fato os mais questionáveis, pois, como já comentaram, a jornalista em tela não é do mundo da ficção e sequer, já morta, tem como responder ao lugar que Eastwood lhe reservou na História; por outro lado, entretanto, são questões relacionadas a um personagem específico e não ao estado de coisas que constitui o que é central neste filme, que é mais uma crônica histórica cinebiográfica americana documentando mais um certo tipo de herói que brilha e se apaga.

Por fim, se a humanização do personagem é uma das linhas de força de O caso Richard Jewell, é porque Clint não filma um tijolo ou um pedaço de madeira, mas a complexidade humana e da vida – os indivíduos com seus anjos e demônios, contradições e sensibilidades específicas.

Marcos Aurelio Felipe

Marcos Aurelio Felipe

Professor do Centro de Educação da UFRN, com atuação docente na área das tecnologias e linguagens em contextos educacionais e pesquisa na área dos estudos de cinema. Desenvolve projeto de pesquisa de pós-doutorado sobre cinematografias indígenas, com foco na experiência da ONG Vídeo nas Aldeias (VNA).

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