Da promessa à apatia: hoje Natal é um “cemitério cervejeiro”

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Saudações, nobres cervejeiros!

Ainda um pouco na mesma “vibe” do texto da semana passada (clique aqui para ler), o escrito de hoje vai abordar um pouco da cena cervejeira potiguar e como ela ziguezagueou ao longo dos anos.

Infelizmente, a conclusão do texto já está dada no seu próprio título. Alguns diriam se tratar de spoiler, e a maioria das pessoas não gostam disso (ao menos quando se trata do final de um filme, de uma série ou de um livro). Porém, como aqui não tem novela nem lengalenga, o final já é presumido. Mais do que isso, ele é factual, para qualquer um que conheça minimamente Natal e seus entornos cervejeiros.

Todavia, o texto por si só não se exprime pelo seu título, tanto quanto não se deve julgar um livro pela capa ou ler apenas a sua “orelha”, o revestimento interno que chamamos de conteúdo é sempre o essencial a ser perscrutado. Mais do que isso, entender como, ao longo do tempo, Natal decaiu, quando parecia progredir, é o ponto central de toda essa discussão, por ora tratada.

Assim, sem mais demora, vamos compreender melhor o que houve, o que há e o que possivelmente acontecerá no cenário cervejeiro escrutinado na bela e controversa “cidade do sol”.

Saúde!

Do início à promessa de uma boa oferta de cervejas artesanais

O cenário das cervejas artesanais no Brasil começou a ter um desabrochar mais significativo a partir do ano de 2012, início de 2013, nessas proximidades. Claro que existiam cervejarias pequenas e produções artesanais independentes antes disso, contudo, trilhando a revolução lupulada da década anterior dos Estados Unidos, a reverberação de tal situação se deu aproximadamente nessa época.

Na cidade do sol, o avanço do cenário cervejeiro também se deu mais ou menos nessa época, talvez com o delay de alguns meses… Acredito que a primeira grande empreitada foi feita com a inauguração do quiosque da falecida franquia do Mr. Beer na (por ora) recém-inaugurada nova área do Natal Shopping.

Certamente que seus preços exorbitantes em nada atraíram o grande público. Para se ter ideia de quão escorchantes eles eram uma Chimay Blue custava 40 reais. Hoje em dia, 12 anos depois, esse ainda é o preço médio dessa mesma cerveja nos supermercados. Talvez essa tenha sido a razão pela qual esse quiosque durou pouquíssimo tempo.

A partir de 2013, novas distribuidoras intensificaram mais o seu trabalho, trazendo uma variedade ampla de rótulos, tanto nacionais quanto internacionais. Por aqui aportaram nos anos seguintes cervejas internacionais da EvilTwin, Rogue, Brewdog, Põhjala, Founders, To Øl; e nacionais como Tupiniquim, Dogma, Seasons, Bamberg, dentre várias outras.

A promessa e as expectativas eram altas.

Natal parecia progredir.

O apogeu cervejeiro em Natal: bares com mais de 20 opções diferentes nas torneiras

O auge do cenário cervejeiro em Natal provavelmente foi atingido entre 2016 e 2018. Nessa época, a oferta de cervejas trazidas de fora aumentou significativamente, os bares com cerveja artesanal surgiam praticamente a cada esquina (deem o devido desconto pelo exagero da empolgação desse que vos escreve), e as ofertas de taps com diferentes cervejas era bem grande.

Um dos bares que fez sucesso nessa época foi o Paddy’s, que chegou a ter duas unidades funcionando simultaneamente, sendo uma delas no Natal Shopping, local onde se deu o pontapé cervejeiro em Natal com o Mr. Beer (mas não exatamente no mesmo local de outrora, saliente-se). Incrivelmente, o Paddy’s em seu ápice chegou a ter (pelo menos) 20 (talvez até mais, não sei precisar a quantidade total ao certo) taps, ou seja, 20 tipos diferentes de “chopes” a serem servidos simultaneamente.

Para uma cidade como Natal, isso foi algo monumental, tanto que atualmente não temos nada perto disso funcionando na cidade (daí a conclusão exposta no título do texto). Hoje o cenário é muito mais contido que naquela época, e o que é ofertado não chega nem perto em termos de diversidade de estilos que havia.

Nos taps mencionados era possível encontrar Weizenbier Alemã da Weihenstephaner, Maibock Americana da Rogue Ales, até mesmo os estilos belgas da Chimay estavam disponíveis nas torneiras, eventualmente. Nessa época, as Hazy IPA’s (ainda denominadas naquele tempo como NEIPA’s) começavam a despontar fortemente no cenário nacional e também tinham grande destaques nas torneiras: Dogma, Everbrew, Oceânica e muitas outras cervejarias nacionais marcavam presença no rol de ofertas.

Eram tempos dourados para quem morava ou estava em Natal para degustar boas cervejas, servidas diretamente das torneiras.

Importante destacar que havia outros locais com boas ofertas, tanto em latas e garrafas quanto nas torneiras também, com destaque especial para o Mestre Cervejeiro, que não tinha tantas torneiras assim, mas chegou a ter 4 rotativas e também para a Estação do Malte, que tinha várias torneiras disponíveis e ainda não tinha focado em sua produção própria e exclusiva (que é o seu modelo de negócio atualmente).

Nesse mesmo período, as cervejarias locais se profissionalizaram, passando a oferecer mais opções para o movimento cervejeiro do “beba local”.

O cenário atual e o encolhimento das ofertas

Atualmente, Natal é um cemitério cervejeiro! Essa é a conclusão mais fácil a se chegar. Inexiste bar que tenha a mesma proposta do Paddy’s de outrora, que oferte vários estilos, de várias cervejarias diferentes, locais, nacionais ou importadas, ao mesmo tempo.

O que se tem são apenas os brewpubs das cervejarias locais, que as comercializam por preços geralmente maiores que os PDV’s, com eventuais ofertas exclusivas de cervejas sazonais. Ou seja, tudo que você encontra em outros locais, você encontrará lá também, com algumas raras exceções pontuais…

A oferta de cervejas importadas diminui vertiginosamente, e no formato de “chope” (ou seja, na pressão das torneiras) virou um item cervejeiro inexistente, simplesmente não se encontra. Toda a oferta e multiplicidade de cervejas, de estilos cervejeiros e de cervejarias que havia há menos de 10 anos simplesmente se esvaiu.

Os detratores desse texto (ou quem simplesmente não concorda) vai dizer: não dava lucro. Ou, não há apoio para a cena cervejeira em Natal, ou qualquer coisa parecida com isso. Ou que a alta carga tributária inviabiliza os negócios e tudo mais… Enfim, parece uma ladainha.

Não duvido que essas pessoas possam estar certas. Não estou aqui para discutir os motivos e sim para rememorar o passado recente e fazer constatações sobre o presente. Inobstante, as constatações são inexoráveis: aquilo que já foi pujante em Natal, hoje em dia, não é nem sombra do que já foi…

A situação é tão difícil que até mesmo grandes restaurantes natalenses estão recorrendo à cervejaria Dogma para criar cervejas pseudo-exclusivas para suas respectivas marcas. Pseudo-exclusivas porque levam o nome do restaurante no seu rótulo, mas, de fato, tratam-se de cervejas que são lançadas como de linha pela cervejaria com outros nomes, em outros mercados, Brasil afora.

Mais árido e desértico que isso, impossível.

É um funeral em curso.

Apatia total no cenário cervejeiro natalense.

Saideira

Natal é um cemitério cervejeiro, as opções são cada vez mais limitadas (até mesmo em termos de cervejarias locais) e não há nenhuma perspectiva de mudança ou de progresso nesse sentido. A dificuldade é tão grande que quando algum amigo de fora vem para a cidade e me pede alguma recomendação de onde ir para beber cerveja eu nem tenho muita opção para indicar.

Na verdade, a minha recomendação é: traga sua própria cerveja, caso realmente queira beber algo diferente.

Sim, é um cemitério, e agora os zumbis virão me atacar pelo que eu falei, pois, por mais que seja algo que salta aos olhos, ninguém tem coragem de falar.

Recomendação Musical

A recomendação de hoje é de uma banda que eu não tenho muito apreço, contudo, o nome da canção se encaixa bem demais com o título do texto.

Trata-se da música Cemetery Gates, da banda de Groove Metal americana: Pantera.

https://www.youtube.com/watch?v=RVMvART9kb8

Saúde!

Lauro Ericksen

Lauro Ericksen

Um cervejeiro fiel, opositor ferrenho de Mammon (מָמוֹן) - o "deus mercado" -, e que só gosta de beber cerveja boa, a preços justos, sempre fazendo análise sensorial do que degusta.
Ministro honorário do STC: Supremo Tribunal da Cerveja.
Doutor (com doutorado) pela UFRN, mas, que, para pagar as contas das cervejas, a divisão social do trabalho obriga a ser: Oficial de Justiça Avaliador Federal e Professor Universitário. Flamenguista por opção do coração (ou seja, campeão sempre!).

Sigam-me no Untappd (https://untappd.com/user/Ericksen) para mais avaliações cervejeiras sinceras, sem jabá (todavia, se for dado, eu só não bebo veneno).

A verdade doa a quem doer... E aí, doeu?

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