Os termos e expressões linguísticas que saem da boca das pessoas simples revelam marcas da expressividade da linguagem. São exemplos da sabedoria popular, decorrentes de observações empíricas e comentários jocosos. Muitas delas são frases feitas de caráter metafórico, idiomático que povoam a oralidade dos mais simples.
Cresci ouvindo várias dessas locuções e, após adulto, também pesquisei sobre algumas delas, visitando diversos autores: Cascudo (coisas que o povo diz; locuções tradicionais do Brasil), Raimundo Nonato (calepino potiguar: gíria rio-grandense), Clementino Câmara (Gerigonça do Nordeste, trabalho recuperado pela pesquisa do professor Geraldo Queiroz), Leonardo Mota (adagiário brasileiro), Maria do Socorro Aragão (linguagem regional popular na obra de José Lins do Rego; glossário aumentado e comentado da bagaceira), dentre outros. São obras de fôlego, belíssimos e verdadeiros repositórios linguísticos do pujante falar popular nordestino.
Pois bem. Fiquei me lembrando de algumas expressões que já ouvi de pessoas da minha família e de amigos meus. Recentemente elas vieram-me à mente, trazendo-me ao rosto um sorriso largo. Vejamos algumas:
– Vem com teus peitos moles me dizendo que é moça. Locução que expressa desconfiança em relação à castidade de certas garotas. “Ser moça” é tratamento usado para aquela que é virgem. A expressão revela a crença em uma relação causal e inevitável entre a flacidez das mamas (ptose mamária) e a perda da virgindade.
– Não ter uma rede para dar um ataque. Ser muito pobre. Não ter dinheiro para nada. No meio rural, a rede sempre serviu de caixão para pessoas muito pobres. Equivale a “não ter onde cair morto”, “não ter um pau para dar num gato”, “não ter uma ruela”.
– Não ter carne na bunda para fazer um pastel. Pessoa muito magra, magérrima. O pastel é uma fritura (pode ir ao forno também) feita de massa de farinha de trigo e geralmente possui pouca carne em seu recheio. Equivalente à expressão “magro que só rato de casa de ferragem” (verdade, em uma casa de ferragem não deve haver muito que se comer).
– Você só pega no que é seu quando vai mijar. Diz-se de quem não possui bens e é aproveitador do uso de coisas alheias.
– Mentir que só cachorro de preá. Ser um(a) mentiroso(a) contumaz. Provavelmente, a motivação semântica advém do fato de o cachorro, durante a caça, latir e fuçar buracos em que, muitas vezes, não há nada, fazendo crer ao caçador que encontrou algum preá.
– Não dar um pão a um doido. Ser avaro, mesquinho. O ato de oferecer um pão a quem supostamente não trabalha por causa de grave demência seria um ato de mais alta caridade (na liturgia, o pão equivale à hóstia consagrada). Contudo, tal prática é incapaz de sensibilizar o sovina inveterado.
– Por azar até em jogo de castanha. Diz-se de quem é muito azarento, capaz de agourar até a mais simples competição ou brincadeira.
Segundo Carlos Alberto Marques (brincadeiras de ontem), na época da safra de caju, era comum o jogo de castanha. O bancador (aquele que disponibilizava uma moeda como prêmio) colocava um espantalho, chamado macaco, ao lado do montículo com a moeda, para dar azar aos jogadores. Em contrapartida, João Galvão, meu colega e amigo, me narrou que, na sua infância, o prêmio que ficava no montículo era uma castanha. Essa deveria ser atingida e derrubada. Quem conseguisse derrubar “o prêmio”, ia acumulando castanhas para depois assar e comer.
– Ser atravessado igual a cu de calango. Cresci ouvindo essa locução com o sentido de algo que está mal-arrumado, mal-amanhado, desorganizado, fora do lugar apropriado ou devido. Fico matutando sobre a origem motivacional da expressão. Nas minhas “investigações teóricas”, não cheguei a informações conclusivas. Seria a modificação de alguma outra expressão?
Qualquer dia, ainda vou fazer uma observação da parte final do aparelho digestório do bichinho para ver se realmente é oblíquo ou, quem sabe, disposto em cruz. Se sim, bingo! Estaria explicado. Tudo em prol da Linguística e da lexicologia!
– Ninguém dá nada por ele/ela. Contém caráter preconceituoso. Diz-se quando alguém se surpreende ao descobrir as qualidades intelectuais (ou prestígio social) de um indivíduo, após tê-lo julgado somente pela aparência e tipo físico.
– Desculpa de amarelo é comer barro. Usa-se em resposta a alguma desculpa ou justificativa considerada esfarrapada, sem lógica, sem coerência.
A geofagia é a mania de comer terra ou barro. Acredita-se que para curar “amarelão”, doença que causa grave anemia e deficiência de ferro, algumas pessoas comiam barro, por causa da abundância desse mineral no solo. Entretanto, a prática ocasiona justamente um efeito contrário, pois a terra pode estar infestada de vermes nematoides que causam a doença.
Bom, para terminar, cito um ditado sertanejo coletado por Leonardo Mota e usado por aqueles que desejam fugir de qualquer trabalho, seja antes de comer ou depois de alimentado: saco vazio não se põe de pé e saco cheio não se dobra. Até a próxima!
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Texto espetacular que mostra com exatidão a riqueza do acervo vocabular do povo nordestino.