Autor vence Prêmio Sesc de Literatura com contos sobre violência na infância

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por Wilson Coêlho

DEMASIADO HUMANO

Contos curtos. Frases idem. Ideias cirúrgicas, sintéticas e telegráficas. Eis a ‘Receita para Se Fazer um Monstro’, de Mário Rodrigues, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2016, na categoria contos.

De uma certa forma, sua narrativa destaca uma espécie de crueldade e violência da infância. De acordo com o autor e também professor de literatura Mário Rodrigues, numa de suas entrevistas: “Toda boa literatura, pra mim, é sustentada por um tripé: Personagem, Linguagem e Narrativa.” O autor cumpre este entendimento, mas há momentos em que estes três elementos atuam como um universo girando ao mesmo tempo em rotação e translação, ou seja, em torno da ideia como conteúdo e em torno de si como forma.

Escrito na primeira pessoa, o narrador participa da história como personagem. Não que os sentimentos, as ideias e as emoções sejam necessariamente as do autor. Depois, a linguagem diz respeito ao estilo e a maneira como a história se constrói através da palavra e da organização das situações.

Em ‘Receita para se fazer um monstro’, também destaca-se a ruptura dos gêneros literários, ou seja, flutua na fronteira entre o conto e o romance. Todos os contos do volume são autônomos e se bastam de forma independente, considerando que cada um deles têm início, meio e fim. Mas há uma unidade entre as narrativas onde se repetem não somente o protagonista, mas alguns outros personagens e situações, ou seja, a obra também poderia ser classificada como um romance. Como em ‘O jardim das delícias’, de Hieronymus Bosch, considerando que a tela em sua totalidade, é uma narrativa, ao mesmo tempo em que a obra é composta por pequenas cenas que são autônomas e contam sua própria história em separado sem perder seu caráter de pertencimento com o tema proposto pelo autor.

Fiel à definição de “boa literatura” como aquela que se sustenta da tríade personagem/linguagem/narrativa, o personagem-narrador-protagonista de ‘Receita para se fazer um monstro’, conforme o próprio autor, é um menino sem nome que se define como um mandacaru (“Tenho só espinhos e um deserto à minha volta”). Mas apesar do “menino sem nome”, o personagem fala de algum lugar e, nesse sentido, soa bem importante a forma como Mário Rodrigues se utiliza de termos regionais, não só valorizando sua cultura, mas também contextualizando sua narrativa. Mas estes termos aparentemente “regionais”, se universalizam na medida em que podem ser compreendidos no meio da narrativa que lhes empresta um significado no tempo e no espaço em que é utilizado.

Ao compreendermos a narrativa de Mário Rodrigues como a crueldade e a violência da infância, temos ai algumas reflexões. Num primeiro momento, podemos nos reportar à obra do escritor e dramaturgo espanhol Fernando Arrabal. Não só pela “infantilidade” dos personagens arrabalianos, tanto no que diz respeito à “ingenuidade” dos mesmos, quanto na ideia de uma amoralidade, pois para o autor espanhol, o ser humano não é bom e nem mal, e que seus atos, por mais cruéis que sejam, não passam de uma incapacidade do homem em compreender sentido da existência.

Depois, deve-se levar em conta a forma como o personagem lida com a morte em alguns dos contos, lembra o médico e psicoterapeuta alemão George Groddeck, diga-se de passagem, considerado o inventor da psicanálise, antes de Freud, que o acusou de misticismo. Conforme Groddeck, numa de suas cartas imaginárias a uma amiga idem, em ‘O livro d’isso’, as crianças não acreditam em Deus e não têm medo da morte.

Ainda, no que tange o mundo infantil e a forma como o mundo vai se construindo a partir da experiência do ser-para-o-outro, também podemos ilustrar aqui com o conto ‘A infância de um chefe’, de Jean-Paul Sartre, do livro ‘O muro’. Assim como Sartre, Mário Rodrigues também brinca com a ideia cartesiana da certeza da existência.

Também, ‘Receita para Se Fazer um Monstro’ lembra ‘Pequenas criaturas’, de Rubem Fonseca, na medida em que explora assuntos triviais e que, de alguma forma, pareceriam medíocres e insignificantes se não estivessem diante de uma pena rigorosa e crítica.

Enfim, explorando as afinidades de sua obra com outras literaturas, vale considerar certa a morbidez de seus contos com a obra do uruguaio Horacio Quiroga, inclusive quando este, numa citação de Ibsen, diz que “com a palavra humano ou a expressão é humano, dissimulamos e desculpamos todas as covardias e as transigências do coração e do caráter”. Humano, demasiado humano, de Nietzsche.

Assim, ao longo de sua narrativa, fica muito claro que a infância e na infância de nosso modelo de civilização estão colocadas todas as condições materiais para a violência latente que perpassa todas as possibilidades de nos humanizarmos, ou seja, de nos tornarmos humanos, considerando que não nascemos humanos, mas nos “humanizamos” a partir de nossas experiências com o mundo, para que sejamos aceitos neste mundo como uma ideia, desde o que já existe como um valor até o que criamos como uma possibilidade de darmos sentido à existência.

E é justamente nas traquinagens infantis que o autor, ao longo da narrativa, explora e revela os mecanismos pelos quais a vingança e a violência se constituem como valor e estabelecem os conceitos de justiça em nosso modelo de “civilização”.

Wilson Coêlho

Wilson Coêlho

Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 17 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 22 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.

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