Jamais abandonei o caminho que me leva ao
encantamento do passado.
Câmara Cascudo
Meu primeiro contato com a obra de Manoel Onofre Jr., mesmo que indiretamente, foi em 1997, quando cursava o ensino médio no Cefet. Dentre as diversas atividades culturais promovidas pela escola, a ida ao teatro era uma delas, e foi justamente aí que conheci um pouco do universo ficcional do escritor e crítico literário nascido no sertão potiguar e radicado em Natal.
Seu livro “Chão dos simples” foi adaptado para o teatro por Lenício Queiroga, que escreveu, dirigiu e atuou na peça homônima, cuja estreia aconteceu nos palcos do Teatro Alberto Maranhão, espaço do qual não desfrutamos há algum tempo porque está interditado desde 2015, e sem data para ser reaberto.
Voltemos ao livro. Há tempos, ele estava naquela lista de obras imprescindíveis e somente agora, durante o isolamento social, tive a oportunidade de desfrutá-lo com o tempo e a tranquilidade necessária que a leitura exige. Puro deleite a leitura dessa obra, um alento para esses dias incertos que vivemos.
O exemplar que tenho em mãos é um primor e tem um valor afetivo especial porque foi adquirido no Sebo Natal, cujo proprietário é meu irmão Paulo Luís, poeta, leitor voraz e apaixonado por livros como eu. Impossível ir visitá-lo no centro da cidade e não sair de lá com alguns livros (sem contar os que ficam pra depois), e quando se trata de literatura do RN, então.
Aliás, quando tudo isso passar, essa é uma das coisas que preciso fazer com mais frequência, tanto pelos motivos citados, como também, e principalmente, pela alegria do reencontro e da partilha com esse irmão querido que é também um amigo com quem gosto de dialogar e aprender.
Chão dos Simples
Chancelada pela Sarau das Letras, revista e ampliada, esta é a terceira edição de “Chão dos Simples”, e traz, ao longo dos capítulos, ilustrações de Carlos José e Iaperi Araújo. Os desenhos são um primor e retratam de forma singela algumas das narrativas ambientadas em Serra Nova, “a pequena Macondo do escritor norte-rio-grandense”, como escreveu Hildeberto Barbosa Filho, numa alusão ao escritor colombiano Gabriel García Marquez e seu clássico “Cem anos de solidão”.
O prefácio é assinado pelo escritor Thiago Gonzaga. O leitor terá uma grata surpresa ao final da obra: a fortuna crítica do livro assinada por Anchieta Fernandes, Hildeberto Barbosa Filho, Nelson Patriota, Nilo Pereira e Veríssimo de Melo. Um presente para leitores como eu, que devoram prefácios, orelhas, posfácios…
Esse é um dos daqueles livros que a gente lê de um fôlego só. Mas eu não queria que acabasse logo e criei uma estratégia de leitura, lia apenas quatro contos a cada manhã. Tal qual a personagem do conto “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, para mim aquele “era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o”.
E foi assim minha viagem pelo sertão encantado de Manoel Onofre Jr., degustando lenta e prazerosamente cada história. Por vezes, tive a impressão de estar sentada na calçada de uma daquelas casas de Serra Nova, enquanto o narrador me contava aquelas histórias e eu, cada vez mais inebriada com aquele universo mágico, queria mais e mais.
Hildeberto Barbosa Filho compara o narrador de Chão dos Simples” ao narrador de Walter Benjamin, quando este se refere ao contista russo Leskov, e diz que se trata de uma narrativa calcada na riqueza da tradição oral. Assim, na perspectiva do escritor paraibano, temos um narrador que conta suas estórias à beira da fogueira, “sob a prata do luar e no silêncio das noites mal-assombradas”.
São narrativas curtas, quase cinematográficas, marcadas por uma linguagem simples, enxuta, direta, retratando com originalidade diversos aspectos da cultura sertaneja, crendices, costumes. Histórias de beatas, donzelas, solteirões, cangaceiro, cigano, matador, e tantas outras figuras que compõem o cenário de uma cidade do interior nordestino. Como escreveu Nilo Pereira, a vida que o autor recorda “é o retrato de uma gente simples, crédula, profundamente telúrica”.
Gostei de todos os contos, mas, por questão de espaço, e para manter a curiosidade do leitor, destaco alguns: “A primeira feira de José”, “Joca”, “O destino e seu Tintim”, “Na boca da noite”, “A verdadeira história de Joãozinho e Maria”, “Duelo de titãs”.
Assim como Nilo Pereira, “cada vez mais me convenço mais da necessidade que tem o escritor […] de um retorno lírico à infância, às paisagens familiares, à evocação de algumas cenas onde tem sempre uma boa velhinha que conta uma estória […]”.
Aliás, na dedicatória do livro, escreve o autor: “A meu pai, que me contou muitas histórias do sertão”, comprovando o que diz Nilo Pereira sobre tal evocação à infância, com seus “alumbramentos e perplexidades”, para lembrar o título de uma obra de Edson Nery da Fonseca sobre a poética de Manuel Bandeira. Afinal, como sintetizou Nilo Pereira, “O menino de Martins e o poeta de Serra Nova se dão aos mãos no tempo proustiano, e ei-los no escritor das coisas simples, míticas, ingênuas, alma de um tempo imortal”.