David Fincher é um diretor virtuoso, parece saber muito bem o efeito que cada escolha sua na construção de um filme pode propor. Nesse sentido, ele é um manipulador tal qual Alfred Hitchcock, mas, talvez, de uma maneira mais sutil. Em Mank, por exemplo, existe uma primeira camada que, supostamente, diminui a autoria de Orson Welles durante a criação do clássico Cidadão Kane. Por outro lado, ao mesmo tempo, a forma com a qual o roteiro é guiado engrandece a potência visual solidificada por Welles no filme de 1941.
Mesmo assim, com toda habilidade possível, Fincher não é conhecido por sua dedicação em promover diversão. O entretenimento dos seus filmes está muito mais ligado à experiência estético-dramatúrgica. Muito dessa condição pode ser reflexo das temáticas de suas obras: serial killers, o mundo do empreendedorismo, manipulação da realidade… e, aqui, no filme em questão, uma discussão quase hermética, escrita pelo seu pai (Jack Fincher, falecido em 2003) sobre a autoralidade de um dos maiores filmes já realizados.
Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!
A falsa natureza e a artificialidade proposital
Acontece que Fincher, assim como Alfonso Cuarón com Roma (2018), parece empenhado em um projeto pessoal e Mank acaba por ser uma visão muito clara do seu diretor sobre aquilo que mais domina: a forma.
Cada elemento visual é precisamente escolhido. O preto e branco — artifício visual mais óbvio — está longe de ser comum; a iluminação do diretor de fotografia Erik Messerschmidt (em seu primeiro longa-metragem de cinema) é quase idílica, sonhadora, podendo remeter à utilização do p&b de David Lynch.
Além disso, o contraste trabalhado na pós-produção é simbolicamente leve, reforçando a luz difusa e a sensação de sonho.
O domínio de Fincher sobre o filme, ainda, é escancarado em se falando dos meios digitais que ele utiliza para alcançar o resultado pretendido. É interessante, por essa perspectiva, como a repetição sistemática de círculos pretos no canto superior direito durante as pouco mais de duas horas são claramente uma simulação da filmagem em carretéis antigos.
Do mesmo modo, a natureza falsa é exposta sem pudor, com destaque para a cena em que Mank (Gary Oldman) passeia com Marion (Amanda Seyfried) por um zoológico.
Fincher não quer — ou parece não querer — que Mank seja um filme dos anos 1940. Cada detalhe pensado liga o todo à época retratada e consegue, simultaneamente, mostrá-lo como uma ilustração atual quase caricatural.
Inclusive, sua escolha pelo formato CinemaScope, só apresentado ao público mais de uma década após o lançamento de Cidadão Kane, adorna a artificialidade da proposta.
A fábula celestial e a crueldade mecânica
A diversão de Mank, então, é particular para Fincher e um tanto quanto impenetrável. Pode ser visto como um filme de bastidores, mas a verdade é que, no fundo — e em muito na superfície técnica — trata-se de um trabalho sobre a maleabilidade dos fatos. É uma visão pessoal que mistura realidade encenada e ficção, resultando em uma fábula sonhadora.
A visão fincheriana é tão significativa que, mesmo discutindo sobre o que é autoral e de quem é a autoralidade do texto de Cidadão Kane, utiliza planos e ângulos que sedimentaram, justamente, a força histórica do filme da década de 1940.
Da profundidade de campo à corpulência exagerada das aparições em contra-plongée (com a câmera filmando de baixo para cima) do Welles interpretado por Tom Burke, Mank pode ser visto, claramente, como um filme de Fincher em essência, mas é como se fosse dirigido pelo próprio Welles, celestialmente.
Essa carta celeste, que pode ser experenciada como uma declaração de amor para a velha Hollywood, ironicamente talvez esteja mais para uma manifestação do poder destrutivo da indústria. Isso porque, aqui, praticamente ninguém fica feliz ou orgulhoso do seu trabalho.
A exceção da regra, que pode estar no antagonismo de Louis B. Mayer (Arliss Howard), é cruel em certo ponto e sempre contemporânea: um homem que tem noção do seu poder e o utiliza mecanicamente, moldando suas emoções a favor dos próprios interesses — como a redução de salários de funcionários que ele chama de família.
Virtuosismo do coração
Toda a virtuosidade de Fincher, no final das contas, faz com que Mank seja, sem dúvida, uma demonstração de… virtuosidade. Pode ser redundante, mas não deixa de ser um fato.
Apesar disso, a manipulação hitchcockiana, de todo jeito, parece não encontrar algo que o diretor inglês, por mais desaforado que fosse, transbordava em seus filmes: emoção.
Não que Fincher não tenha a capacidade de emocionar, mas pode ficar a sensação de que é mais um trabalho — excelente — no qual a experiência estético-dramatúrgica está acima da emocional.
A partir dessa medida, mesmo sendo um filme tão pessoal, Mank une-se a’O Curioso Caso de Benjamin Button (2008) para atestar que seu diretor lida de maneira muito mais efetiva quando a temática não exige comoções à flor da pele.
E isso é a polpa, o sumo do que é David Fincher: alguém que, quando pende para sentimentos mais humanos e universais, parece não conseguir uma medida centrada.
Se o filme de 2008 recai até em um sentimentalismo mais cafona, aqui não existe esse sentimentalismo. Ele está todo na forma. Isso, ao mesmo tempo em que tem força para afastar o público, revela muito mais onde está o coração do diretor: totalmente dedicado ao cinema. E não existe arte mais verdadeira do que aquela que é feita com o coração.
Mank está disponível no catálogo da Netflix.
Texto originalmente publicado no Canaltech