Macaíba, um recorte cultural (parte 1)

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Hoje a cidade de Macaíba celebra 145 anos de fundação. E para homenagear o município, o Papo Cultura posta os textos publicados na 18ª edição da Revista Preá, em 2006, elaborados por este editor que vos escreve – um recorte interessante da cidade que pulsa cultura nos redores do centro comercial e foi berço de ilustres da intelectualidade potiguar.

Macaíba, Ponto de Cultura do RN

A primeira impressão quando se visita Macaíba é a de uma cidade que mais parece um grande centro comercial. Nas principais ruas e avenidas do município pequenos comércios se espalham. É raro ver residências. As ruas são estreitas e parecem implorar por um plano diretor que dê suporte ao inchaço cada vez maior da cidade. Mas Macaíba é também um município com boa representação cultural. E ela mora em suas comunidades e distritos vizinhos. É lá onde encontramos a autêntica cultura popular da cidade, que a 18 km da capital, já respira o ar de um progresso desordenado. Mesmo estando estes atores culturais distantes e longes de formar um pólo cultural coeso e organizado, eles conseguem mostrar seu trabalho com algum incentivo municipal.

Os prédios e monumentos históricos de Macaíba estão bem preservados. Tombados pelo patrimônio histórico do Estado retratam muito do passado da cidade e do Rio Grande do Norte. O Solar do Ferreiro Torto, o segundo engenho do Estado, localizado ainda no centro da cidade, recebe visitas diárias de estudantes do ensino público. Eles passam a conhecer a importância daquele monumento e dos filhos ilustres de Macaíba, como o educador Henrique Castriciano; o historiador Tavares de Lira, também governador, senador, ministro da Justiça, da Viação e Obras Públicas e da Fazenda; a poeta Auta de Souza, de talento reconhecido internacionalmente; Augusto Severo, precursor da aviação e inventor do balão Pax; além de seu irmão, Alberto Maranhão, governador do estado em dois mandatos, cognominado o “mecenas da cultura potiguar”.

E talvez Alberto Maranhão tenha plantado sua influência no município. O termo “mecenas da cultura” se aplica bem à atividade cultural de Macaíba. Os “personagens” que constroem a cultura macaibense, mesmo os mais afastados – moradores das 45 comunidades do município, entre urbanas e rurais, ou nos quatro distritos da cidade – estão bem engajados no comércio de sua arte. Outros procuram expor seus trabalhos em Natal: uma forma de dar maior visibilidade à produção. É o caso do cordelista Ivan. A Casa de Cultura de Macaíba foi inaugurada há pouco tempo e deve centralizar e facilitar o contato entre os artistas e artesãos. Situada no coração do município, no antigo casarão da família Mesquita, servirá de palco e vitrine para as manifestações artísticas da cidade, contribuindo para a preservação de sua memória.

E a construção da memória de Macaíba começa nos idos do século 17. No ano de 1645 a cidade ainda não existia como unidade político administrativa. Havia somente os sítios de Ferreiro Torto, Uruaçu e Jundiaí, habitados por portugueses, mestiços e índios. Somente no século 18, no período entre 1780 e 1795 é que surge o primeiro nome da vila emergente: Coité, uma árvore muito vista na vila. No início do século 19, o comerciante Fabrício Gomes Pedroza instala um comércio nos Guarapes, local responsável pelos grandes carregamentos comerciais do Rio Grande do Norte. Com grande influência política no Estado, Fabrício Gomes muda o nome de Coité para Macaíba, uma palmeira, bem distribuída na propriedade do comerciante. No final do século 19, em 27 de outubro e 1877, através da Lei 801, a Vila foi elevada à categoria de município.

Macaíba tem hoje 62 mil habitantes. Antigo centro comercial do Estado destaca-se hoje por seus festejos regionais, como as vaquejadas. O artesanato também é bem produzido, com bordados em ponto e cruz e macramé. Os trabalhos em cerâmica são variados. As bonecas de pano de Benedita Jerônimo Campelo é quem mais representa a tipologia artesanal do município, reconhecida pelo Programa de Arte do Estado (Proarte). Aliás, Macaíba, por ser berço de ilustres como Auta de Souza e Augusto Severo, e também abrigar comunidades remanescentes de quilombola, é o único município do Rio Grande do Norte reconhecido como Ponto de Cultura pelo Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania. Uma prova do valor cultural de uma cidade rodeada por boas manifestações artísticas.

As bonecas de pano de dona Benedita

Imagina-se que muitas menininhas de comunidades afastadas e pobres desejem brincar de boneca. É próprio da idade. Por sina do destino, muitas ganham de brinquedo a inchada ou as sementes para plantar no roçado. E foi justo destes pesares que a vida impõe que a artesã Benedita Jerônimo Campelo, 62 anos, resolveu ela mesma confeccionar suas bonecas. “Meu pai não tinha como comprar. Comecei a fazer as minhas. Eram feinhas que só”.

macaíba - bonecas de panoMas fez. E assim fez também a mais autêntica tipologia do artesanato macaibense, tudo feito com retalhos e pedaços de pano. Foi também a necessidade que fez com que Benedita parasse com a “brincadeira” de fazer boneca de pano. “Casei. A vida ficou diferente”. Para tentar vida melhor, ela e o marido, servente de pedreiro, foram morar em Atibaia/SP. Benedita só voltou a Macaíba aos 48 anos. Voltou também a confeccionar suas bonecas.

Ainda assim o comércio de seu produto era fraco. A comunidade Tapará, onde mora é pobre e afastada do centro de Macaíba. Benedita colocava uma banquinha na estrada de barro, em frente ao sítio onde mora. A estrada divide os municípios de Macaíba e São Gonçalo do Amarante. O sítio ela chamou de Tapera Arte. Quando em campanha eleitoral, o então candidato a prefeito, Fernando Cunha passou pela comunidade Tapará e viu a banquinha de Benedita. Empolgado com o produto, resolveu ajudar a artesã.

Benedita hoje participa de vários eventos ligados ao artesanato no estado: Centro de Convenções, Ribeira das Artes, Brasil Mostra Brasil, Festa do Boi… Os cursos que fez também foram muitos. Em um deles aprendeu a fazer bonecas miudinhas, de uns 3 centímetros, que Benedita vende como brincos. Tem também chaveiros. A produção é variada em cores, tamanhos e formas. As peças mais caras são Lampião e Maria Bonita. Custam 20 reais. Tem também a menina, a vovó, a doméstica e até sereia. Benedita disse que a sereia ela se inspirou nas lendas que o pessoal contava na antiga Lagoa do Major, ali perto.

O tecido e os retalhos são doados por amigas ou comprados por Benedita. Para dar melhor forma às bonecas ela enche com algodão. Às vezes com areia. Se não gostar da combinação de cores, pinta com tinta para tecido. Os olhos das bonecas são feitos de linha cola. Depois é só costurar. “Tenho encomenda até pra fazer 100 bonecas. Tem boneca minha espalhada em todo canto hoje”.

Casas de Farinha: uma tradição que resiste

As Casas de Farinha ainda se mostram uma tradição em Macaíba. Resistem à evolução dos tempos como podem. Hoje são casas de farinha comunitárias. Cerca de vinte ao todo, mas seis em pleno funcionamento. Estão espalhadas entre comunidades e distritos do município. Geralmente empregam quase toda a família. A farinhada, extraída da mandioca – Macaíba tem a maior área de mandioca plantada do Estado – é a agricultura de subsistência mais tradicional do município. São mais de 200 anos nessa atividade.

macaiba - casas de farinhaSem maiores incentivos, as Casas de Farinha tentam barrar a força inexorável do tempo e resistir ao processo de industrialização. E se por um lado a produção rudimentar mantém o gosto apurado da farinha de mandioca, por outro a produção é bem menor. O paladar ainda é o termômetro para saber a qualidade do produto. Bota-se a farinha na boca e a experiência é quem diz se está no ponto certo. No processo industrial há máquinas para medir a temperatura do produto.

Os trabalhos nas Casas de Farinha de Macaíba, assim como em outras espalhadas pelo Estado, obedecem certa hierarquia na divisão dos trabalhos. Os homens costumam plantar e colher, prensar na moenda e torrar a mandioca. Mas dona Nair Teixeira de Sousa, 83 anos, moradora do distrito de Mangabeira, e antiga raspadeira nas Casas de Farinha lembra que as mulheres também “colocavam a mandioca para passar no modete: um cilindro de madeira com cerras em volta para moer e triturar a mandioca”.

A mandioca ainda é lavada, prensada e torrada em forno, para matar o veneno. Depois, a farinha é colocada em um resfriador para ser pesada e ensacada. Ao final, da massa preparada se faz uma boa tapioca ou os bejús quentinhos e irresistíveis mesmo àqueles mais acostumados.

Nada se perde nas mãos de Paulo Bezerra

Paulo Bezerra de Macedo, 53 anos, é daqueles que não deixa nada se perder. Uma casca de cebola ele usa como enfeite de abajur. E mais: a casca é colada em um papel já reciclado, que serve para o entorno da lâmpada da peça. Usa também pétalas de rosa para complementar. O suporte para o abajur também é elaborado de restos de material: pó de granito, colados em gesso já com um belo adorno artístico de um homem e uma mulher se abraçando. Paulo chamou de “cara-metade” a peça. O acabamento é em pintura sintética.

Esses são apenas alguns dos materiais usados pelo artesão. No sítio onde trabalha, no distrito de Cajazeiras, por onde se olha tem uma caixa com pedaços de madeira, canos de PVC, resíduos de minérios (que consegue da mina Brejuí, de Currais Novos), catembas de coco, etc. Ele diz que metade do que produz é feito de restos de material. Mesmo o que sobra de sua própria produção ele reutiliza em outras peças. E tudo feito à mão. A única máquina elétrica é uma lixadeira.

As esculturas em granito são as que chamam mais atenção. Os santos em gesso, em tamanhos variados também são bonitos, bem trabalhados. Mas muitas de suas peças parecem comuns, pouco originais apesar da beleza. É que a maioria das encomendas que recebe, seja de Natal, Recife ou de estados do Sul já vem com pedido formalizado de escultura. Quando dão chance de Paulo Bezerra criar a peça, aí sim, o resultado é outro.

Muitas das luminárias dos hotéis da Via Costeira, em Natal são feitas por ele. Postes iguais, padronizados. Mas no sítio do artesão se vê luminárias até em forma de cacto. Paulo colocou lâmpada até na parte interna de uma palmeira imperial. As cores avermelhadas da casca da árvore deram um tom peculiar à luminária, que tem ainda a base feita de tronco de carnaúba. Parece uma obra de arte.

E a marca do artesão é mesmo o improviso. Do papel reciclado que ele mesmo produz, saem peças como luminárias, abajures, caixotes, etc. Da madeira, as peças são incontáveis. Tem até tabuleiro de dama. “Só não faço chover. Mas se eu tiver tempo eu preparo”, brinca.

Ivan mistura música com cordel

A recitação do cordel já na infância ensina muito. É cultura popular. É poesia popular. É a história matuta, nordestina. É identidade e memória de um povo. Quando Ivan Umbelino da Silva era criança, sua mãe costumava ler cordéis pra ele. Hoje, o menino virou Ivan Cordel, 30 anos. Mas se o cordel é tudo isso, é também desprestigiado no mundo-hoje. Parece ter perdido seu valor com o sumiço das feiras livres de antigamente, onde violeiros, repentistas e poetas populares cantarolavam as coisas do sertão, as coisas suas.

E talvez por essa falta de incentivo aos cordelistas, Ivan não conseguiu publicar um cordel sequer. Tem 20 escritos. Outros se perderam. O jeito de se virar fazendo o que gosta foi incluir seus cordéis na música. Ivan toca forró em bares e eventos. Já representou o município de Macaíba em fóruns e apresentações variadas. Já gravou dois CDs independentes. Ganhou concursos como o Macaíba Conta a História da sua Rua, onde recitou poesia sobre a rua Coité, nome primeiro de Macaíba. “O cordel está muito presente na música. As pessoas é que não percebem”, observou.

macaíba - ivan cordel

Ivan Cordel tentou se classificar para a final do concurso regional de forró, o Forraço. A composição, intitulada Perfil de um Sertanejo, tem melodia triste. Parece cantar as dores do sertão. Por muito pouco Ivan ficou de fora. A música mela com cores de sertão até a música de Tom Jobim, mostrando que a vida não é só pau, nem só pedra, nem ainda é o fim do caminho:

“Pra viver no meu sertão/ tem que ser batalhador/ e erguer com muito amor/ a bandeira do Nordeste,/ gostar da flor do campestre/ e ter os pés no chão,/ e dividir o tostão/ com aqueles que passam fome./ Assim deve ser o homem/ pra viver no meu sertão./ Cortar mato, cortar lenha,/ cultivar milho e feijão,/ macaxeira e mandioca,/ gergelim e algodão,/ tomar banho de açude,/ de manhã cedo acordar,/ numa madrugada serena,/ ouvir os pássaros cantar./ Ê meu sertão/ terra de cába da peste:/ Virgulino Lampião,/ meu sertão do juazeiro,/ mandacaru e carvão./ A dor que corta meu peito,/ dilacera o coração,/ lamentando os que se foram/ como Elino Julião./ É pau, é pedra, é ferro, é fogo,/ pra viver no meu sertão./ Ê sertão, ê sertão./ Terra de cába da peste./ Penso no rei do baião”.

Para ajudar a renda mensal, Ivan visita por conta própria as escolas de Macaíba para recitar seus cordéis. É sempre bem aceito entre professores, diretores e alunos. Ao final, como diz, passa o chapéu para receber algum. Uma troca mútua entre o cordelista e os alunos, que vão pra casa sabedores da “Vida do Pobre Sertanejo”:

O pobre do sertanejo trabalha muito na roça

Anda sempre de carroça

Às vezes sente amargura

Mas mora no interior

O jeito é dar valor

Viver da agricultura

 

É um trabalho pesado

Mas ele é acostumado

No interior grosseiro

Quando sai sente saudade

De toda aquela amizade

Que tinha com os companheiros

 

Quando chega o mês de janeiro

Adiante o de fevereiro

Com aquele grito de guerra

O tempo fica nublado

E o agricultor preparado

Pra cultivar a terra

 

Quando o inverno demora

No sertão o pobre chora

Agradecendo ao Senhor

Pois digo de coração

Sem inverno no sertão

A vida não tem valor

 

Hoje em dia o sertanejo

Não satisfaz seus desejo

Vivem todos revoltados

Porque os governante

Já não dão valor

Aqueles póbi coitado

 

Quando é período de eleição

Eles chegam no sertão

Promete a lua e o sol

E o póbi desesperado

Precisando, coitado

Cai na isca do anzol

 

Quando vão olhar pra trás

Já não adianta mais

O peste já ta eleito

E assim nesse engano

Entra ano e finda ano

E para o póbi não tem jeito


FOTOS: Preta Luna, reproduzidas de celular da revista.

 

Sérgio Vilar

Sérgio Vilar

Jornalista com alma de boteco ao som de Belchior

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