Se come muito bem na literatura portuguesa de Eça de Queiroz (parte 2)

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por Manoel Onofre Jr.

O romance Os Maias é considerado por muitos estudiosos a obra-prima de Eça. Alguns críticos, em menor número, dão a primazia a O Primo Basílio, e ainda outros, encantados com os primores estilísticos do autor, preferem A Cidade e as Serras. Certo é que Os Maias constitui-se no trabalho mais ambicioso do grande ficcionista – a obra que mais exigiu da sua capacidade de fabulação e do seu engenho na construção da narrativa e dos personagens.

Um vasto painel da alta-sociedade lisboeta em determinados períodos do século XIX, tendo, no enredo, como piéce de resistence, um caso de incesto: Carlos da Maia, jovem e diletante médico, neto querido do fidalgo Afonso da Maia, senhor do “Ramalhete”, apaixona-se por uma bela mulher, Maria Eduarda, mas vem a descobrir, tardiamente, que ela é sua irmã. E em tudo se faz presente o espírito crítico, por vezes irreverente e cáustico, do autor.

Assim se define, de modo simplista, essa obra inigualável, verdadeira culminância do Realismo em língua portuguesa.

Curiosamente, não é nas suas páginas que se encontra o Eça gastrônomo por excelência. Ao longo dos dois alentados volumes, que compõem o livro, surgem apenas sete referências à culinária portuguesa típica, além do mencionado na primeira parte deste escrito a respeito dos ovos moles de Aveiro. Não é muita coisa se comparada à fartura de acepipes descritos em A Cidade e as Serras, obra bem menos extensa.

De saída há em Os Maias uma passagem bem humorada, em que se destacam duas especialidades da cozinha lusitana: as queijadas e o bacalhau.

São famosas as queijadas de Sintra. Ainda hoje, turistas que visitam aquela serra paradisíaca, nos arredores de Lisboa, não deixam de se deliciar com essa guloseima feita com farinha de trigo, leite, ovos, queijo e açúcar.

Queijadas portuguesas

Quando o personagem Cruges vai a Sintra, em companhia de Carlos da Maia, na hora da partida, “uma voz esganiçada de mulher gritou-lhe de cima” (do primeiro andar de sua casa):

“- Olha, não te esqueçam as queijadas.”

Em Sintra os dois amigos passeiam, conversam, desfrutam as belezas serranas, mas, em dado momento, Cruges exclama:

“- Diabo! É necessário que não me esqueçam as queijadas!”

Mais passeios, mais conversas, e encontram o amigo Alencar, festejado poeta da velha guarda, romântico empedernido, que, após cumprimentá-los com efusão, convida-os:

“…vou-me entender lá abaixo à cozinha da velha Lawrence, e preparar-vos um ‘Bacalhau à Alencar’, récipe meu… E vocês verão o que é um bacalhau! Porque, lá isso, rapazes, versos os farão outro melhor; bacalhau, não!”

E fartam-se de bacalhau e de Sintra.

Na volta, já dentro do break (carro de tração animal) (1), que os levaria a Lisboa.

“- Com mil raios! – exclamou de repente o Cruges, saltando de dentro da manta, com um berro que emudeceu o poeta, fez voltar Carlos na almofada, assustou o trintanário (2).

“O break parara, todos olhavam suspensos; e, no vasto silêncio da charneca, sob a paz do luar, Cruges, sucumbido, exclamou!

“- Esqueceram-me as queijadas!”

Páginas adiante, João da Ega, o amigo e confidente de Carlos da Maia, vindo de Sintra, depara-se, numa das salas do “Ramalhete”, com Carlos e sua amada Maria Eduarda. Surpreso com a presença da mulher, ali, no solar dos Maias.

“Ega ia largar atarantadamente o embrulho, para apertar a mão que Maria Eduarda lhe estendia, corada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado, desfez-se; e uma provisão fresca de queijadas de Sintra rolou, esmagando-se, sobre as flores do tapete. Então todo o embaraço findou através de uma risada alegre – enquanto o Ega, desolado, abria os braços sobre as ruínas do seu doce.

“- Tu já jantaste?” – perguntou Carlos.

“Não, não tinha jantado. E via já ali uns ovos moles nacionais que o encantavam, enfastiado como vinha da horrível cozinha do Vítor. Oh ! que cozinha! Pratos, traduzidos do francês em calão como as comédias do Ginásio!”

Note-se que, embora citando, ao longo do seu romance, vários pratos da culinária francesa (3), Eça gostava mesmo era das comidas da sua terra.

Em outra passagem de Os Maias, quando Ega diz que, talvez, vá a Sintra, Carlos recomenda-lhe:

“…E tu, se fores, traz-me umas queijadas para a Rosa, que ela gosta!…”

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O arroz-doce, “grande acepipe nacional”, não poderia faltar num jantar oferecido a Maria Eduarda pelo seu amado:

“A mesa redonda e pequena, parecia uma cesta de flores; o champanhe gelava dentro dos baldes de prata; no aparador a travessa de arroz-doce tinha as iniciais de Maria.”

“E Carlos, alegremente, anunciou um jantar à portuguesa”. Mr. Antoine, o chef francês, fora com o avô. Ficara a Micaela, outra cozinheira da casa, que ele achava magnifica, e que conservava a tradição da antiga cozinha freirática do tempo do Sr. D. João V.

“- Assim, para começar, minha querida Maria, aí tens tu um caldo de galinha, como se comia em Odivelas, na cela de madre Paula, em noites de noivado místico…”

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Num restaurante de Lisboa, Ega foi almoçar, ainda abalado com a revelação do parentesco entre Carlos e Maria Eduarda.

Doce de ananás

“O bife era excelente – e depois de uma perdiz fria, de um pouco de doce de ananás, de um café forte, Ega sentiu adelgaçar-se, enfim, aquele negrume que desde a véspera lhe pesava na alma.”

Esta é, aliás, a segunda alusão ao ananás (abacaxi), que, à época da ação romanesca, devia ser fruta exótica, rara e cara.

Na quinta dos Olivais, junto a Maria e Ega, “Carlos ria, preparando numa travessa o ananás com sumo de laranja e vinho da Madeira” (…) Conversavam animadamente.

“Mas o Domingos servia o ananás. E o Ega provou e rompeu em clamores de entusiasmo. Oh! que maravilha! Oh! que delicia!”

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Encontrando-se, tempos depois, no Chiado (4), com os amigos Alencar e Cruges, Carlos convida-os a jantar.

“Tenho um jantarzinho à portuguesa que encomendei de manhã, com cozido, arroz de forno, grão-de-bico, etc., para matar saudades…”

Um dos pratos mais afamados da cozinha típica portuguesa – o cozido. Nele entram, em profusão, carnes bovina e suína, legumes, verduras, e especialmente, embutidos – chouriço, paio, etc. -; isto o diferencia do cozido à brasileira. Diga-se que não vem acompanhado de pirão, como o nosso.

————

Já numa das páginas finais de Os Maias , Carlos, havendo retornado a Lisboa, após longa ausência,revê a sua cidade em companhia do amigo Ega. Trocam ideias, formulam “ teorias” sobre o sentido da vida, falam de Portugal e dos seus males, e tudo veem com um olhar extremamente crítico. “ De repente, Carlos teve um largo gesto de contrariedade:

“- Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite ! Esqueci-me de mandar fazer hoje, para o jantar, um grande prato de paio com ervilhas”.

Esse anseio pela culinária típica talvez fosse, também, do próprio Eça, que morou, longos anos, em Paris, mas nunca cortou os laços com a sua terra.


 

NOTAS.

1-Break (breque). “Carruagem de quatro rodas com um assento alto adiante e ordinariamente dois bancos atrás longitudinais e fronteiros um ao outro” (Lello Universal – Dicionário Enciclopédico Luso- brasileiro. Vol. I – p.387- Porto: Lello & Irmão Editores, sem data).
2-Trintanário. “ Criado que senta na carruagem ao lado do cocheiro e que abre a portinhola, entrega bilhetes de visita, etc.” ( Ob. cit. Vol. IV,p. 1076).
3- Sole normande, jambom aux épinards, poulet aux champignons, galantine.
4- Chiado – bairro de Lisboa; um dos recantos mais elegantes da cidade à época da ação romanesca ( e ainda hoje).

Manoel Onofre Jr.

Manoel Onofre Jr.

Desembargador aposentado, pesquisador e escritor. Autor de “Chão dos Simples”, “Ficcionistas Potiguares”, “Contistas Potiguares” e outros livros. Ocupa a cadeira nº 5 da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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