O fatalismo cíclico de Guerra Civil (2024)

PIX: 007.486.114-01

Colabore com o jornalismo independente

Por Paula Pardillos

Violência, adrenalina, morte iminente: a proposta do diretor Alex Garland consegue lançar o espectador à guerra como não vi em outro filme antes. Enquanto produções como O Resgate do Soldado Ryan (1998), Coração Valente (1995), 300 (2014), colocam o espectador no meio de cenas intensas de batalha, que ficaram marcadas por seu impacto, em todos eles a audiência contava com a distância segura da tela do cinema. Quando Garland nos coloca para vivenciar a guerra junto das suas protagonistas, que são fotojornalistas, a sensação de vulnerabilidade nos alcança com muito mais força, como se a lente do filme pudesse ser, a qualquer momento, a lente das personagens com quem estamos (e com as quais nos importamos). A adrenalina me chegou como nunca antes, e a violência e morte iminente pareceram muito mais reais, quase como se pudessem passar da tela e chegar à plateia, atrás da câmera.

Além disso, o roteiro se estrutura com muita sutileza, sem exposições e sem criar arcos em excesso (o que tem sido um problema recorrente em longas-metragens, que parecem querer repetir o formato de séries, ou talvez aprofundar mais do que conseguem). O desenvolvimento da protagonista, Lee (Kirsten Dunst), pode ser resumido em apenas uma fala e uma ação, tendo acontecido entre essas duas apenas com olhares: insinuar que fotografaria Jess (Cailee Spaeny) se ela fosse morta; e apagar a foto que fez de Sammy (Stephen McKinley Henderson) morto. Do outro lado, Jess não consegue fotografar os homens enforcados, que ela nem conhece, e ao final de seu desenvolvimento ela consegue fotografar Lee caindo morta sobre ela mesma, depois de salvar sua vida.

E é nesses arcos que reside o pessimismo de Garland ou, quiçá, é onde enxergamos pessimismo, através das lentes do tempo em que vivemos agora. Para mim, é impossível não pensar nos jornalistas em Gaza, que documentavam o genocídio em curso, perpetrado pelo estado de Israel sobre a população palestina; a maioria deles já foi, também, assassinada pelo regime. É impossível não pensar em todas as notícias que reportavam os requintes de crueldade nas ações do exército, e que se tornavam ainda mais dolorosas ao testemunharmos a postura de sionistas (ao redor do mundo) diante desses fatos, reduzindo-os a uma reação justificada e naturalizando a barbárie.

Lee começa o filme desistente: “Ela perdeu a fé no poder do jornalismo”, diz Sammy. “Nós não podemos fazer nada, nós tiramos fotos para que outras pessoas possam se importar”, Lee ensina para Jess. Ao longo dessa hora e meia de exposição aos horrores da violência sem sentido, é difícil não concordar com o fatalismo de Lee, que parece não acreditar que algo possa mudar os rumos da sociedade.

Enquanto pode-se dizer que Lee evoluiu ao longo da trama e recobrou a fé na sua missão ao conectar-se com Jess, eu acho o contrário. Ela se moveu na direção de conectar-se com os amigos, perdendo a fé na missão a ponto de apagar a foto de Sammy e de salvar Jess ao invés de seguir o caminho até o presidente. Jess, que é como ela era na sua idade, a substitui. Supõe-se que até perder também a fé e outra a substituir.

Esse movimento de repetição causa um cansaço existencial semelhante ao causado pelo movimento cíclico da história, quando os acontecimentos se repetem: avançamos e retornamos ao ponto de início; temos uma onda progressista, seguida de uma onda fascista.

Nesse momento histórico, em que testemunhamos uma guerra na Ucrânia que não dá folga, seguida de um genocídio promovido por uma potência militar sobre um povo sem exército, esse retrato que Garland entrega, além de pesado sensorialmente, deixa um gosto de melancolia. Seu filme é povoado de personagens que não parecem querer provocar mudanças no mundo, apenas encontrar seu lugar nele.

Entretanto, o retrato de Guerra Civil (2024) não é A Verdade. Ele transparece um sentimento de fatalismo que paira sobre o senso comum contemporâneo.

Assim, quando parte da recepção crítica interpretou que Guerra Civil (2024) é uma homenagem ao fotojornalismo, tenho receio de que esse entendimento esteja alinhado com a visão de mundo “encontrar seu lugar num caos imutável”; apesar de esperar que não seja o caso, desejo que tenhamos senso crítico para enxergar além da tragédia que vivemos, e que possamos imaginar que um outro mundo é possível.

A arte, milhares e milhares de vezes, serviu para jogar luz em personagens invisibilizados. Uma história, um filme, tem o poder de nos fazer enxergar— e sentir — realidades distintas da nossa, possibilitando a criação de empatia, de alteridade com o outro.

É necessário acreditar que existe mudança a longo prazo, do contrário nos resignaríamos a cumprir uma profecia auto realizada. As ondas de resistência batem, mas é fato que podemos enxergar diversos aspectos que melhoraram na sociedade moderna com a amplificação do círculo de empatia, com uma adaptação moral progressiva ao longo das eras.

Que ainda tenhamos fé que o ser humano não é ruim naturalmente, e que um dia a maioria esmagadora das pessoas considere que a guerra é uma arbitrariedade completamente absurda e desumana que não pode ser justificada.

Paula Pardillos

Paula Pardillos

Escritora e crítica, membra da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte. É também roteirista e diretora de cinema, com enfoque no gênero terror.

WhatsApp
Telegram
Facebook
Twitter
LinkedIn

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais lidos do mês