Lisboa – Portugal, 03 de Janeiro de 2017.
Descobrimos ontem aqui perto do hotel Amazônia um snack bar em que um sujeito de Bangladesh trabalha fazendo sanduíches e Quebabs. Ele fala um português sofrível e tem um ajudante barbudo que fala pior ainda. Os preços, no entanto, são bons e o lugar é quente (dois requisitos fundamentais para enfrentar o ano novo em Lisboa).
A impressão que eu tenho é que a capital de Portugal, como outras capitais que visitei, parece ser um lugar bem cosmopolita. Segundo pude sondar, esses primeiros dias os “indianos” e “chineses” estão comprando muitos estabelecimentos comerciais e ontem à noite tivemos uma amostra dessa “invasão asiática” quando fomos comer comida japonesa em um restaurante chamado Kiku, perto da baixa do Chiado. Lá soubemos que as garçonetes eram da China, o que gerou uma grande perplexidade geopolítica diante do fato de termos chineses vendendo comida japonesa em Lisboa. Isso se a gente leva em consideração o histórico de animosidade entre esses dois países orientais (resquício mnemônico da brutalidade nipônica durante a segunda guerra mundial).
Antes do jantar, quando chegamos no terreiro do paço, Ana foi tomada por uma espécie de alumbramento estético com o céu de inverno e o cenário da Árvore de Natal iluminando o grande largo onde, até 1777, ficava o palácio imperial da dinastia dos Bragança. Uma pequena multidão acompanhava um show de uma artista cabo-verdiana que cantava fado sem ser triste ou trágico (coisas que só a África consegue nos proporcionar). Essa mesma pequena multidão, logo na sequência, dançou timidamente, em meio ao vento frio que vem do Tejo, sob o som de uma banda que tocava clássicos do cancioneiro cubano. Tudo isso me fazia lembrar os sintomas de uma globalização que, segundo alguns profetas da ciência política, estaria prestes a colapsar.
O terreiro do paço (chamado também de “praça do comércio”) tem um museu interativo e audiovisual, pequeno, mas bem estruturado, feito para contar a história da cidade, a partir, justamente, da história daquele terreiro aberto às margens do rio. As meninas ficaram impressionadas com a sala que reconta a história do grande terremoto de Lisboa, ocorrido em primeiro de Novembro de 1755.
Era dia de todos os santos e a população de Lisboa rezava nas Igrejas quando um dos maiores terremotos já registrados na Europa devastou completamente a cidade. Na sequência, uma série de incêndios, talvez iniciado pelos presos que escaparam das prisões em ruinas, arrasou o que ainda tinha permanecido em pé. Foi quando uma parte dos sobreviventes da catástrofe correu para o terreiro do Paço em busca de um local aberto que, em tese, os protegeria de novos tremores e desabamentos. Como se não bastasse toda a desgraça, um tsunami, formado pelas ondas sísmicas do tremor, arrastou para dentro do Tejo as pessoas que estavam no local, terminando de arrasar as partes baixas de Lisboa, matando mais da metade da população da cidade.
Os que sobreviveram à catástrofe se refugiaram em colinas, dormindo em barracas improvisadas, sendo acossados pela fome e pela sede. As repercussões dessa desgraça lusitana varreram a Europa, sendo registradas em pinturas alemãs, inglesas e russas. Voltaire, em Paris, recuperando o escândalo ontológico e o velho problema do mal, escreveu um libelo contra a ideia de castigo divino se perguntando qual seria a vilania que mulheres e crianças lisboetas teriam cometido contra Deus, que os tornariam piores do que os cidadãos de Paris, Londres ou de Roma.
Até Kant entrou na treta intelectual e escreveu artigos sobre o terremoto de Lisboa, construindo seu célebre argumento da amoralidade das leis naturais e da impossibilidade lógica de que um Deus perfeito subverta a mecânica das leis que Ele mesmo criou para ordenar o cosmos a fim de operar milagres e evitar tragédias desse tipo.
No fim das contas saí daquele terreiro com a sensação de que, talvez, os autos de fé, em que pessoas “relaxadas ao braço secular” (como se dizia na época) eram levadas para morrer na fogueira, por pecados que nem sabiam quais eram, tenha alguma ligação com aquele terremoto; mas esse seria um deslize teológico meio constrangedor para quem leu os argumentos de Voltaire ou de Kant nos seus textos de 1756.
O fato é que a previsão de trovoadas para o dia de hoje não se cumpriu e a temperatura subiu um bocado (para o padrão do inverno europeu). Isso permitiu que a gente se encontrasse com Rômulo Gois, meu ex-aluno do curso de Direito, que está fazendo doutorado na Universidade Clássica de Lisboa. Quando soube que estaríamos na cidade, Rômulo, que é filiado ao PSOL e ligado a vários coletivos de esquerda que denunciam, aqui em Portugal, o golpe parlamentar de 2016 contra Dilma, gentilmente se dispôs a nos levar por um passeio pela Lisboa histórica. Ele morava na cidade desde 2010 e estava de volta depois de uma longa viagem de uns dois meses, em que saiu de São Petesburgo e foi até o Irã, passando pela Mongólia (onde quase morreu congelado num frio de menos 40 graus), pela China e pelo Sudeste asiático.
Rômulo me passou uma ideia bem interessante do que é Portugal hoje, dez anos após a minha primeira estadia por aqui, e sobre o que significa estar em uma Europa recortada por contradições e cercada de oriente por todos os lados. A primeira parada do passeio foi na feira da Ladra, que funciona na parte antiga da cidade desde, pelo menos, o século XIV. Pegamos um bonde no terreiro do Paço (de novo ele) e subimos para a cidade alta até o espaço da feira, que me pareceu raquítica (ao menos para os padrões de exigência de um frequentador do Alecrim no dia de Sábado). Depois disso descemos pelo bairro de Alfama com suas ruas em forma de labirinto. Aquele me pareceu um bairro realmente interessante. Os mouros tiveram a ideia de construí-lo criando um espaço urbano apertado, com ruas estreitas em zigue zague, sombreadas por sobrados de quatro ou cinco andares onde os arqueiros maometanos podiam se alojar nos tetos das casas e alvejar os invasores (como os modernos snipers abatem soldados inimigos em combates urbanos).
Os prédios de Alfama também têm largas paredes brancas para refletir o sol nos dias de calor (uma estratégia mediterrânea clássica de arquitetura) e a disposição de suas ruas labirínticas ajudava a encanar o vento para aliviar o microclima do lugar no escaldante verão lisboeta.
Rômulo me conta que Alfama é hoje o símbolo das contradições da recuperação econômica de Portugal. Quase dez anos depois do colapso de 2008, a economia do país parece dar sinais de que, timidamente, deixou de respirar por aparelhos. O mercado imobiliário, impulsionado pelo turismo, se expandiu no bairro, gerando um acelerado processo de gentrificação, expulsando os moradores mais antigos por meio de um aumento vertiginoso dos aluguéis, tudo isso turbinado no ritmo do RBNB.
Alemães, dinamarqueses, ingleses, que usualmente passavam o verão na costa da Turquia, em função do fluxo de refugiados que escapam do colapso dos estados nacionais árabes no oriente médio; resolveram agora se mudar para Lisboa no verão e ocupam os apartamentos das velhas casas construídas pelos mouros.
Curioso é que a sofisticada técnica urbanista maometana que evitou as invasões militares estrangeiras, tenha sucumbido justamente ao poder da grana que ergue e destrói coisas belas.
A influência mourística em Portugal não se encontra só no bairro de Alfama. Rômulo nos leva para visitar um centro cultural alentejano perto do largo da Igreja de São Domingos. O lugar é um espaço que reproduz uma casa no estilo mourisco, com um pátio interno ladeado por grandes arcos e colunas de madeira esculpidas com formas abstratas. Os alentejanos são os “nordestinos de Portugal” – Rômulo nos explica – “Eles falam usando o gerúndio (como nós) o que, para os nortistas, é sinal de breguice”. Marcados por tradições rurais agrestes em uma zona bem mais árida e muito mais moura, se tornam muito mais aparentados ao nordeste semita, cantado em verso, prosa e monografia pelos antropólogos do sertão.
Curioso que esse espaço alentejano, mourísco e “oriental”, se localize bem perto do largo da Igreja de São Domingos, que fica ao lado de onde funcionava o tribunal do santo ofício em Lisboa. Em frente à Igreja foi erguido um monumento com a estrela de David em memória aos cristãos novos mortos e perseguidos pela Inquisição durante o longo período de terror que se abateu na península ibérica. Além desse memorial, em frente ao antigo prédio onde funcionava o tribunal da inquisição, tem uma marca no chão onde se lê que ali se queimavam pessoas e livros.
Como um sinal soturno da loucura daqueles anos, no interior da Igreja, afetada ela mesma por inúmeros incêndios, como os que ocorreram após o terremoto de 1755, a fuligem nas paredes queimadas se preserva. Cansados de reconstruir o templo, os católicos portugueses, depois do último incêndio na Igreja, refizeram apenas o teto, mantendo as paredes com as marcas do fogo em meio a colunas lúgubres e escuras e as imagens de santos chamuscados postos perto do altar.
A memória das vítimas do massacre de 1506, em que milhares de cristãos novos foram mortos, ainda ecoa naquela igreja marcada pelo fogo. A praça em frente, que hoje se chama de Praça da Tolerância, é ponto de encontro de africanos e refugiados sírios, os novos judeus de uma Europa que insiste em manter bem vivos, mesmo que chamuscados, os fantasmas do seu próprio passado, enquanto aguarda o próximo grande terremoto que vai chaqualhar as fundações políticas do continente.
2 Comments
Excelente, Pablo . Em igrejas cristãs adventistas até hoje o terremoto de Lisboa é apresentado como cumprimento de Apocalipse 16:18. Seria um dos sinais da “breve” volta de Jesus. Farei um passeio virtual ao bairro construído pelos mouros.
Excelente, Pablo . Em igrejas cristãs adventistas até hoje o terremoto de Lisboa é apresentado como cumprimento de Apocalipse 16:18. Seria um dos sinais da “breve” volta de Jesus.