Acordar cedo, desligar o despertador, lamentar ter de acordar cedo e a noite mal dormida, conferir o relógio e saltar da cama. Cumprir as rotinas de asseio matinal. Esquentar água para o café, ouvir o som agradável da comida sendo preparada, sentir o cheiro do café enquanto se ouve o barulhinho bonito da água sorvida pelo pó traspassar o coador. Ter a certeza de que o dia começou de fato.
Olhar outra vez para o relógio, comer rapidamente enquanto o celular ou a TV dizem coisas que ainda não processamos de verdade, aceitar a falsa urgência do mundo com a sensação de que a vida no planeta se transformou completamente enquanto dormíamos. Recobrar a certeza de que tudo continua rigorosamente igual, apenas mais velho.
Tomar mecanicamente os remédios para viver.
Sair para o trabalho, enfrentar o trânsito, irritar-se com o trânsito, reclamar da conduta nada cortês de quem também está irritado enfrentando o trânsito, sobreviver intacto ao trânsito, esquecer o trânsito até o fim do dia.
Lidar com as rotinas de trabalho, ter problemas, resolver problemas, criar problemas, resolver os problemas criados, relutar em aceitar que alguns problemas não têm solução e por isso já estão resolvidos. Organizar a lista de problemas a serem resolvidos amanhã. Verificar os prazos, sofrer com a proximidade dos prazos, fazer uma pausa para o café, conversar com os colegas de trabalho e esquecer por alguns minutos que o tempo dos prazos corre enquanto você anda. Desesperar-se de novo com os prazos. Entregar tudo dentro do prazo. Ou quase.
Encerrar o expediente.
Repetir a rotina do terceiro parágrafo no sentido inverso.
Entrar em casa. Dar-se conta de que o dia parece extremamente longo sem perceber que os anos passam incrivelmente rápido. Esperar o carnaval. Lamentar o fim do carnaval. Esperar junho. Alegrar-se com uns poucos dias de junho. Reclamar de agosto, por ser infinito. Aguardar dezembro ansiosamente.
Viver nesse meio tempo. Querer viver mais. Não saber o que fazer para viver mais. Ir ao supermercado e assustar-se com o preço de tudo, pensar que comer está cada vez mais caro, beirando o impossível. Entristecer por constatar que, para algumas pessoas, sobreviver foi literalmente impossível. Escandalizar-se com o preço da gasolina, com a política, com os absurdos cada vez mais comuns.
Chorar as perdas. Ignorar o motivo do choro. Pensar sobre a vida. Evitar pensar sobre a vida.
Enganar o dia por algumas poucas horas de nenhuma utilidade e entender que são as únicas horas verdadeiramente úteis do dia. Evitar pensar sobre a vida e a sua inutilidade no mundo. Sentir sono. Lutar contra o sono.
Deitar-se cansado, exausto, aliás. Duvidar se haverá forças para sair da cama amanhã. Revirar-se de um lado para o outro da cama. Não adormecer. Preocupar-se por não adormecer. Repassar mentalmente tudo o que será preciso fazer amanhã. Sofrer por isso. Adormecer e desligar o despertador porque hoje já é amanhã de novo.
4 Comments
Muito boa, Theo. Parabéns! Li-a ouvindo “Amanhã”, de Guilherme Arantes observando as diferenças entre os eu-líricos.
A companhia era boa aí, meu querido. Ehehe
Obrigado pela leitura!
Vida de sobrevivente!
O super-herói diário sem superpoderes…