Saudações, cervejeiros VIP’s!
No texto de hoje, não vamos citar nomes, nem datas, nem eventos. Contudo, quem é do meio, vai saber exatamente do que se trata, ou de quem se trata.
Vamos falar sobre ingressos VIP’s e como essa prática ocasiona uma verdadeira camarotização em eventos cervejeiros.
A camarotização é um fenômeno social que já foi tema da redação do vestibular da FUVEST, no ano de 2015. Parece um ano distante, mas, 7 anos depois, ainda não evoluímos socialmente até hoje a ponto de o tema estar defasado ou superado.
Pelo contrário, a estratificação social se aprofunda cada vez mais, e usaremos no texto em curso um exemplo “fictício” para discorrer um pouco sobre a camarotização do camarote, pois é isso que acaba acontecendo nos eventos cervejeiros.
A camarotização de eventos cervejeiros é uma realidade que precisa ser pensada e repensada com bastante sensibilidade!
Assim, pegue seu ingresso VIP, solicite ao seu maître pessoal sua garrafa de Cantillon versão gold plus mega premium exclusive, guardada nas caves do próprio Jean Van Roy, e aprecie o texto vindouro em seu berço esplêndido.
O que é a Camarotização?
Inicialmente, trarei um breve conceito sociológico sobre o tema da camarotização para aqueles que não são familiares com o termo.
Por camarotização se compreende a imposição territorial e factual da disparidade econômica em eventos e festivais. É o estabelecimento de qualquer espaço físico em separado do restante do público, e que pode assumir diversas nomenclaturas: camarote (de onde o termo deriva), ingresso VIP, área Premium, espaço Gourmet, dentre muitos outros.
Pouco importa o termo utilizado e sim a diferenciação e a apartação entre uma parcela pequena e privilegiada do público em detrimento dos demais presentes. A camarotização é o fenômeno social, advindo da desigualdade social, que permite o confinamento e separação entre diversos estratos sociais.
Claro que o fenômeno descrito não é algo novo, tampouco raro. Acontece em quase todos os shows musicais Brasil afora e em muitos outros eventos similares. O ponto de inflexão, ou especialização que visa ser dado ao texto de hoje, é o olhar crítico de sua ocorrência na cultura cervejeira.
A Camarotização do camarote na cultura cervejeira
Ao se falar de cervejas artesanais ou especiais é necessário se ter a sensibilidade que é um mercado (viva Mammon!) ínfimo se comparado ao que engloba as cervejas de massa.
A principal consequência do tamanho do mercado cervejeiro artesanal, além da pequena difusão da cultura cervejeira, é a questão dos preços. De maneira simples e direta, não precisa ser muito atento para se perceber que cerveja especial (ou artesanal) não é barata (ela é cara, sim! Lidem com isso…) e não faz parte do repertório de lazer das classes subalternas.
Dizendo a mesma coisa de outra maneira, se o mercado de cervejas fosse um show de uma dupla sertaneja, haveria um camarote (área VIP, Premium, ou qualquer termo assemelhado) dedicado única e exclusivamente às cervejas especiais/artesanais. O camarote seria minúsculo e o seu acesso seria bem caro, proibitivamente caro!
Ou seja, adentrar na cultura cervejeira “de elite” (ou high end, como alguns pontos de venda preferem chamar) requer o acesso privilegiado a esse camarote. Beber cerveja artesanal já é algo camarotizado por si só, ainda que, num cenário ideal, não devesse ser assim… mas estamos tratando das coisas como elas são.
Então, quando ocorre uma diferenciação por estratificação (econômica) dentro de um evento cervejeiro, estamos quase que dentro de uma Matriosca (матрёшка) – aquelas bonecas russas que encaixam umas nas outras –, pois é um camarote dentro de um camarote.
Um ingresso VIP em um evento cervejeiro: sinta-se importante
Muito se fala no termo VIP. Ele é um estrangeirismo que já foi incorporado ao léxico tupiniquim mas que nem todos sabem dizer letra por letra o que ele significa.
Destrincho para vocês: VIP é o acrônimo de Very Important Person. Em uma tradução direta e visceral: pessoa muito importante. Trocando em miúdos, ser uma pessoa VIP, ou ter um passe VIP, equivale a portar um atestado de ser uma pessoa dileta, uma pessoa da mais alta estirpe (social).
Traduzindo o passe VIP em termos de tempos de camarotização, é justo enunciar que um camarote é um local separado do “povão”, onde apenas os VIP’s se relacionam, se encontram e interagem entre si. Uma pessoa VIP procura outro VIP, e vice-versa.
Em um evento cervejeiro, ser VIP pode ser muito ou quase nada. Tudo vale a pena se a alma não é pequena, já diria o poeta dos pseudônimos…
Algumas modalidades de ser VIP no evento cervejeiro
Às vezes, o camarote é antes do próprio evento, quando os semi-deuses do Bottle Share (um termo muito utilizado na cultura cervejeira para compartilhamento de cervejas entre os participantes presentes) fazem o seu mise-en-scène (traduzindo, dão o seu “showzinho” particular) através de suas cervejas gringas trazidas clandestinamente em malas-amigas.
Você pode ao menos tentar forjar uma amizade desinteressadamente sincera para ser VIP, nesse caso…
Noutras vezes, o passe VIP dá acesso a uma parte do evento onde líquidos sagrados mais sagrados estão sendo servidos apenas para quem é muito mais importante que a turba marginalizada nos corredores comuns. No entanto, acaba rápido e parece ser apenas mais um dos truques de Mammon para vender ingressos.
Porém, existe um tipo de passe VIP que é digno de uma seção em separado… vejamos a seguir.
Ingresso VIP temporal: A efemeridade da camarotização cervejeira
É possível que você tenha chegado aqui se perguntando se vale a pena ser uma pessoa muito importante (VIP), principalmente quando o valor da importância é medido monetariamente… sim, quanto mais caro, mais importante você é: Viva o Rei do Camarote!
De todas as formas de ser VIP em um evento cervejeiro, existe uma que suplanta todas as demais: a exclusividade de se entrar antes de o evento começar!
Isso mesmo, paga-se a mais para poder beber antes (dos demais, e não exatamente antes de o evento começar, porque, se tem alguém bebendo, ele já começou, ué…).
Um passe VIP por tempo limitado! Quanta efemeridade!
Saliento que tal forma de ser VIP não é uma exclusividade dos eventos cervejeiros de Pindorama. Os gringos também gostam de passar essa vergonha também, até então, problema deles!
O que preocupa mesmo é que esse tipo de mentalidade, “de ser VIP por minutos”, oriunda de fora, seja reproduzida e naturalizada por aqui também.
Quem é VIP por tempo limitado bebe melhor ou bebe mais?
De toda maneira, soa surreal que se pague aproximadamente 20% a mais no ingresso para se ter uma entrada antecipada em meia hora (ou algo em torno disso). E as razões para considerar tal passe VIP esdrúxulo são várias.
Primeiramente, se a noção basilar da cultura cervejeira é beber menos e beber melhor, entrar antecipadamente só deve servir para se beber mais. Lembre-se, o argumento de começar a beber antes do coleguinha não-VIP perdeu seu sentido de ser quando você saiu do ensino fundamental I.
Não obstante, ainda que se rechace fortemente a noção de “beba menos, beba melhor”, o passe VIP temporal ainda continua sendo algo desprovido de sentido.
Principalmente, levando-se em conta que os carros-chefes dos eventos cervejeiros high end são as cervejas denominadas High Gravity (mais alcoólicas, mais robustas, mais densas, e, consequentemente, mais enjoativas).
Afinal, em meia hora de antecipação, quantas cervejas dessas o ser-humano muito importante consegue ingerir? Duas? Três, no máximo?
Talvez até mesmo uma só, caso seu único intuito não seja desmaiar antes da primeira banda do evento terminar de tocar. Enfim, o passe VIP temporal não é algo racionalmente plausível, e algo que sociologicamente apenas reforça a ideia de camarotização de algo que já é elitizado de forma patente.
Saideira
Costumo ver muitas críticas quando os textos possuem um viés crítico social mais intenso. Preferem que apenas se jogue confete para os verdadeiros “incentivadores da cultura cervejeira”, para os verdadeiros “heróis empreendedores”. Não consigo, e os motivos são muitos.
Ter a noção inarredável do privilégio que é se inserir na cultura cervejeira e poder beber cerveja especial/artesanal é fundamental. Caso não se tenha essa “consciência cervejeira”, a banalização de todas as ações se torna a regra.
Nessa esteira, não se consegue perceber como a camarotização em eventos cervejeiros é algo ruim para a própria difusão da cultura cervejeira. A noção estratificada de passe VIP e assemelhados não ajuda de maneira nenhuma a se conhecer e se aprofundar mais nos pormenores culturais que envolvem o cenário cervejeiro como um todo.
Digo e repito na saideira: se a cultura cervejeira, por si, já é um camarote, o ingresso VIP em eventos é a camarotização do camarote cervejeiro artesanal/especial.
Recomendação Musical
Ser VIP é ser importante! Sua importância é quantificada em função do que se tem. Quem paga mais é mais importante, por conseguinte… Quanto maior a influência econômica, mais VIP se é.
Quem não quer ser importante? Ou, melhor dizendo, quem não quer ser alguém importante?
Então brindo-vos com a música I Wanna Be Somebody, da icônica banda de Glam/Horror Metal americana dos anos 80, o W.A.S.P.!
A reboque do que foi dito, um pequeno trecho desse clássico na voz de Blackie Lawless, que demonstra a urgência socialmente imposta de ser VIP:
I wanna be somebody
Be somebody soon
I wanna be somebody
Be somebody too
Muita cerveja, sem camarote, para todos!
Saúde!
