Elevados à categoria de “astros”, entre as décadas de 1960 e 1970, o quarteto britânico composto pelos atores Richard Burton, Richard Harris, Oliver Reed e Peter O´Toole, além de excelentes shakespearianos, tinham outra característica bem peculiar: eram bebuns arruaceiros de primeira.
Burton, Harris, Reed e O´Toole tinham rivais do outro lado do Atlântico, como Marlon Brando, Dennis Hopper, Warren Beatty e Jack Nicholson, mas esse quarteto estadunidense não conseguiu ser mais visceral, louco e sincero nas bebedeiras do que os “filhos da Rainha” – só para nortear a situação, Burton bebeu tanto a ponto de sua coluna vertebral ter ficado revestida com álcool cristalizado (durante as filmagens de Os homens violentos do Klan, ele passou a beber, em média, três garrafas de vodka por dia), e Reed morreu de parada cardíaca enquanto bebia num bar.
O escritor Robert Sellers, autor das biografias de Reed e O´Toole, sabia da existência de passagens memoráveis nas vidas deles, e dos outros dois bebuns, que mereciam ser não apenas lidas, como também visualizadas. Logo, fazer uma versão em quadrinhos do seu livro Hellraisers: The Life and Inebriated Times of Burton, Harris, O’Toole and Reed (2008) era uma opção mais do que acertada.
A editora londrina Self Made Hero apostou na ideia e, em 2011, publicou no Reino Unido a graphic novel Hellraisers. Dois anos depois, a HQ chegou aos Estados Unidos. E em 2015 ganhou uma nova edição no formato e-book, repleta de material extra, incluindo passagens com comentários em áudio (na versão para o aplicativo Sequential).
O termo Hellraiser é empregado para aquelas pessoas que, quando enchem a cara, aprontam mil e uma confusões. Nada mais apropriado ao quarteto de atores supracitados.
A graphic novel tem arte do também britânico JAKe (mais conhecido pelos livros de Star Wars que ilustrou), e traz a pegada das recentes biografias cômicas de celebridades, em quadrinhos, como as de autoria do finlandês Mauri Kunnas (Beatles com A: O nascimento de uma banda e Mac Moose e os Stones).
Robert Sellers concebeu a trama da HQ com a estrutura narrativa do clássico Um Conto de Natal, de Charles Dickens; ou seja, a história começa com um personagem chamado Martin tomando todas no bar, em plena véspera de Natal. Ao chegar em casa, não dá a mínima atenção para esposa e filho, indo logo se deitar com uma garrafa na mão. Ele delira e vê o espírito de seu falecido pai. Este lhe informa que, por ele estar levando uma vida desprezível, irá receber a visita de quatro espíritos tão cachaceiros quanto ele, para que abra os olhos enquanto é tempo.
Os espíritos de Burton, Harris, Reed e O´Toole aparecem a Martin, nessa ordem, convidando-o a rever alguns capítulos de suas delirantes vidas, todas marcadas por excessos (é de se destacar a forma como as transições das passagens das vidas dos atores foi feita, sendo sempre continuada de maneira ininterrupta, proporcionando fluidez à leitura). E, a partir daí, das situações mais constrangedoras e tristes, Sellers consegue tirar ótimas piadas, que ficam ainda mais engraçadas no traço caricato e expressivo de JAKe, como por exemplo:
- Burton e Elizabeth Taylor estão dando uma festa em sua casa, quando chega o crítico teatral Ken Tynan. Burton pergunta se ele gostaria de ir para cama com Liz, e o crítico, meio sem jeito, responde que ele poderia “não dar conta do recado”. Burton berra isso à Liz, que, ofendida pela insinuação de que ela poderia não excitar um homem, manda-o sair imediatamente da festa;
- Richard Harris e Burton, co-estrelas do filme Selvagens Cães de Guerra, nos anos 1970, conseguiram ficar sóbrios durante toda a filmagem. Quando sentiam vontade de beber, começavam a pular sem parar;
- a polêmica gravação de O grande motim, com Harris e Brando se estranhando, a ponto de Brando não dirigir mais a palavra a Harris, no set, passando a gravar a maioria das cenas com seu dublê;
- durante a festa de encerramento das filmagens de Oliver!, Reed batizou o refrigerante das crianças e elas ficaram “altas”;
- O´Toole comprou um bar, com cheque sem fundo, apenas para o antigo dono continuar servindo-lhe bebida;
- sem falar na descrição de como Harris (que costumava consultar os jornais para saber o que havia aprontado na noite anterior, pois não se lembrava de absolutamente nada) perdeu o papel principal em Juramento de Vingança, do Sam Peckinpah, para Charlton Heston, que é uma tiração de onda só.
A relação do quarteto de atores com a bebida é tratada com sobriedade, enfatizando que eles bebiam e se metiam em confusões porque simplesmente era o estilo de vida que gostavam de levar. Contudo, em meio às brigas, as noitadas com mulheres, aos casamentos feitos e desfeitos, todos eles souberam ser profissionais, dando o melhor de si tanto em frente às câmeras quanto no teatro.
O único fato a se lamentar em Hellraisers é sua improvável publicação no Brasil, haja vista ser uma graphic novel voltada para um público mais maduro e cinéfilo.
Fica a opção de importar a versão impressa ou comprar o e-book, através da Amazon (clique aqui).
Quanto a Marlon Brando, Dennis Hopper, Warren Beatty e Jack Nicholson, Robert Sellers também escreveu um livro narrando algumas loucas peripécias dos rapazes, em 2009, chamado Bad Boy Drive. O que me faz pensar numa adaptação para quadrinhos pela dupla Matt Fraction e Chip Zdarsky (de Criminosos do Sexo). Mas aí, já é um sóbrio delírio meu.