BIBLIOBUNKER: Heine hein? Poeta dos contrários

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Heine hein? Poeta dos contrários

 Autor: Heinrich Heine

Tradução: André Vallias

Editora: Perspectiva / Goethe Institut

Ano: 2011

535 páginas

 

Tem um dito, bem sexista, diga-se de passagem, que sintetiza o drama de quem se aventura a traduzir poesias: “se é bonita não é fiel, se é fiel, não é bonita”.

Esse dilema arcaico da tradução poética se torna mais grave ainda quando a tradução é do alemão para o português. Isso porque, para nós que falamos o idioma lusitano, o alemão é uma língua sem escoras.

A língua de Lutero e Goethe, ao contrario do francês, espanhol, italiano e até inglês, tem poucos cognatos com o português, o que faz com que o significante, em uma tradução, seja, muitas vezes, sacrificado no altar do significado.

Por isso a opção de André Vallias, nas traduções dessa coletânea de textos de Heinrich Heine, foi a de subverter esse entendimento intencionalista que põe a suposta “ideia que o autor tinha em mente” acima da musicalidade dos versos e da acústica das palavras.

Vindo de uma escola de transcriação poética que tem no Brasil seus maiores expoentes nos irmãos Campos (Haroldo e Augusto), Vallias oferece pra gente uma atualização de Heine através de substituição da localização das palavras no verso, de inversões de versos nas estrofes, de uso de gírias contemporâneas e de uma grande liberdade criativa que certamente vai constranger tradutores mais ortodoxos (estou lembrando aqui do finado Bruno Tolentino falando mal das traduções dos irmãos Campos no auditório da reitora da UFRN, em 1997).

Essa é uma opção de risco, mas quando bem executada, ajuda o leitor a manter o prazer da leitura de um poeta que sabia, bem antes de Oswald de Andrade, que o humor é a prova dos nove da poesia moderna.

Aluno de Schlegel, Hegel e de Franz Bopp, Heine foi o sujeito que, se não matou definitivamente o romantismo alemão, limpou o cadáver e ajudou a enterrar o corpo.

Transitando na zona ambígua de ser um intelectual judeu em uma Europa marcada pelo terremoto político de Napoleão e das revoluções liberais da primeira metade do século XIX; nômade cultural que flanava entre Berlim e Paris; dividido entre o seu judaísmo ancestral e as necessidades sociais que o obrigaram, inclusive, a se batizar em uma igreja evangélica em 1825 (assumindo a identidade cristã com o nome de  Christian Johann); Heine viveu como poucos a angústia dos “sem lugar”, a aflição dos desterrados.

Marginalizado do cânone de uma “alta literatura alemã” muitas vezes enclausurada pela lírica de Goethe e Schiller e entorpecida pelas mitologias poéticas de Hölderlin, foi um outsider em vários sentidos e deu um cavalo de pau na tradicional crítica literária do seu tempo ao trazer para o interior da cultura germânica o espírito da França pós revolucionaria.

Não há como pensar na Kulturkritik que emergiu na era moderna sem passar pelos versos de Heine, um cara que influenciou gente como Karl Marx (de quem foi amigo pessoal), Charles Baudelaire, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud.

A coletânea com as traduções de Vallias, incluindo, além da produção poética que vai de 1819 até 1855, as Cartas de Helgoland e outros textos em formato de prosa, traz alguns dos poemas clássicos de Heine como Dona Clara (que toca na ferida do racismo antissemita na Alemanha pré-nazista), o famosíssimo Tecelões da Silésia (publicado pela primeira vez em Paris em 1844, por Karl Marx e Arnold Ruge, editores da revista “Avante!”) e o Navio Negreiro (que teria, a despeito do caráter ácido e cínico, secamente analítico em sua denúncia do capitalismo escravagista, influenciado o romântico baiano Castro Alves em seu poema homônimo).

Particularmente meus poemas prediletos são os que Heine publicou entre 1844 e 1851 em homenagem a “Rainha Pomaré”, nome de batalha da dançarina de Can-can Élise-Rosita Sergent, morta de tuberculose antes dos 22 anos.

É isso, amigo velho… se você gosta de poesia, mas tem medo da língua alemã, não se preocupe. Heine, que escreveu para um amigo jurista frases como “tudo o que seja alemão reage feito pólvora em mim” e “a língua alemã dilacera meus ouvidos”, foi, ele mesmo, um poeta que fez esse idioma, tão distante do nosso, flanar.

E a tradução do André Vallias ajuda a gente a flanar junto com ele.

Pablo Capistrano

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia e Direito do IFRN. Dramaturgo do grupo Carmin de Teatro.

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1 Comment

  • Além do objetivo central do texto – promover a leitura de Heinrich Heine – o autor nos traz pensamentos necessários sobre a arte de traduzir. Parabéns!

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