Festa da padroeira de Martins
Num ano desses, antes da pandemia, fui rever a festa da padroeira de Martins, evento memorável na crônica da cidade.
Atendendo a um apelo telúrico, costumo revisitar, de vez em quando, a minha terra adotiva, onde vivi a infância.
Mas, sempre que vou lá, uma constatação me desnorteia. Como tudo, hoje, é diferente da Martins dos meus bons tempos! A festa não tem mais balões, nem aqueles fogos de artifício – rodas, morteiros, bombas – que tanto encantavam o menino. Entrega de ramo? Ninguém mais sabe o que vem a ser isto. Ah! mas banda de música ainda tem. Manhãzinha, bem cedo, toca a “alvorada”, os dobrados e valsas ganham o doce ar da serra, sinos badalam alegremente, foguetões explodem. Ao meio-dia “salva”, e à noite, retreta no largo em frente à igreja matriz.
Naquela noite, quando a retreta se encerrou, a banda saiu, em marcha, no rumo de sua sede, tocando o mesmo dobrado do meu tempo de menino. Com um nó na garganta, retive as lágrimas, que não ficariam bem naquele momento festivo, em meio a tanta gente.
O cheiro da maçã
Um dia – lá se vão alguns anos -, minha irmã Sônia me trouxe do sertão uma especialidade gastronômica: doce de leite feito com rapadura ao invés de açúcar. Delícia!
Esse doce tem pra mim sabor de infância. Minha mãe fazia-o, com mãos de fada. Sônia herdou a receita e a arte de fazê-lo.
Outra lembrança da meninice me ocorre. Quando meu pai voltava de eventual viagem a Natal, trazia na bagagem, entre os presentes destinados à filharada, um pacote de maçãs, verdadeira preciosidade para nós, viventes da Serra de Martins, que só conhecíamos caju, manga, jaca e outras frutas do sertão. As maçãs da capital exalavam um cheiro delicado, inebriante, que nos deixava com água na boca. Literalmente. Pois, hoje, estando eu a fazer compras num supermercado, encontrei, como por milagre, maçãs tão cheirosas quanto aquelas. O aroma intenso me trouxe de volta um pedaço do meu tempo de menino. Proust explica…
Jazz e blues
Música, doce música…
Como simples curioso, amante do jazz e do blues, sem no entanto julgar-me um aficionado destes gêneros musicais, alinho a seguir algumas composições que me marcaram.
Na área da música sinfônica permeada de jazz e blues: “Rhapsody in Blue” e “An American in Paris”.
Nos domínios da ópera, vários trechos de “Porgy and Bess”. Considero o autor dessas obras – George Gershwin – uma das culminâncias da música norte-americana. Sou fã dele. Não me canso de ouvir, também, outras composições de sua autoria como o Concerto em Fá, a “Second Rhapsody”, os musicais da Broadway (“Oh! Kay!”, “Of Thee I Sing”, etc.), estes últimos em parceria, bem assim a ópera.
Em se tratando, propriamente, de música popular, minhas preferências (intérpretes), de memória: Billie Holiday, a que soube expressar melhor a alma do blue; Louis Armstrong, seu piston, sua voz estranha e bela; Benny Goodman, o band-leader, também intérprete até de clássicos com o seu clarinete; Coleman Hawkins, mago do saxofone.
Devo ressaltar que gosto mais dos sucessos das décadas de 1930 e 1940, e não me entusiasmo nem um pouco com as modernas exibições de virtuosismo jazzístico.
Madame Bovary
Acabo de reler “Madame Bovary” e logo vou assistir a uma das versões, para o cinema, da obra-prima de Gustave Flaubert. O filme homônimo é de Claude Chabrol, um dos expoentes da “Nouvelle Vague”, e tem como estrela Isabelle Hupert.
Muito se tem dito a respeito da mania de perfeição, que Flaubert alimentava quanto ao próprio estilo, obcecado pela expressão exata, perfeita. Ele chegou a dizer: “Madame Bovary sou eu”.
Causando escândalo quando do seu lançamento, o livro quebrava tabus, por explorar, de maneira nua e crua, a temática do adultério, dentre muitas outras futucadas na sociedade burguesa de então.
Madame Bovary, a provinciana deslumbrada com os luxos e comodidades da aristocracia; a eterna insatisfeita em termos de sentimento e sexo, é, por excelência, uma anti-heroína. Tema, como este, não poderia passar despercebido a Claude Chabrol, um cineasta transgressor, crítico mordaz da burguesia (embora, diga-se de passagem, sem o radicalismo de um Jean-Luc Godard, seu colega de “Nouvelle Vague”).
Chabrol foi fiel a Flaubert. É impressionante como até mesmo diálogos e expressões constantes do romance, são reproduzidos, literalmente, no filme.
Grande realização, que pode não ser a melhor obra do famoso diretor, “Madame Bovary” vale a pena, e muito, de modo especial para os estudiosos da questão “Literatura versus Cinema”.
Em tempo: Tenho notícia de duas outras adaptações do romance de Flaubert para o cinema, uma de Jean Renoir e outra, de Vincente Minnelli.
Fios da meada
Estou lendo um desses livros que deixam o leitor preso à leitura, prazerosamente, da primeira à última página.
“Fios da meada”, de Ivan Maciel de Andrade, recentemente editado (Caravela Selo Cultural, 2020) reúne artigos e pequenos ensaios, em tom de crônica, sobre literatura, de modo geral, mas contém reflexões e comentários a respeito de outros assuntos. É obra de um escritor no pleno domínio dos instrumentos do seu ofício. Vou colocá-lo na prateleira da estante, onde já se encontram “Os livros, nossos amigos”, de Eduardo Frieiro; “Os livros” (a única viagem), de Hildeberto Barbosa Filho; “Sobre livraria & bibliotecas”, de Marcelo Alves Dias de Souza, e outros de minha predileção.
Ivan Maciel precisa reunir em um volume, várias crônicas de sua autoria (algumas, quase contos), já publicadas em jornal, das quais nos dá uma amostra neste seu novo livro (p.108), quando relata episódio ocorrido numa viagem a Viena.